Crítica: Samuel foi trabalhar (dir. Janderson Felipe e Lucas Litrento)

Texto: Ana Luíza Costa. Revisão: Matheus Chagas.

Havia meses que estava sem trabalho e o desespero de não ter nada em vista me tirava o sono. O mercado estava em baixa, como dizem. Sem outra oportunidade, precisei aceitar voltar a trabalhar no meu antigo emprego emprecariado que me deu como bônus um diagnóstico de burnout. Quando assinei o contrato, um enjoo subiu pelo meu estômago e virou nó na minha garganta. O desespero só mudou de lado. Ou nem isso. A ansiedade por encontrar algo melhor substituiu o medo do desemprego mas manteve a busca incessante por trabalho.

Era um pesadelo.

Tive esse sonho noites após ver Samuel foi trabalhar. Acordei tão desconfiada que abri o app da Carteira Digital para conferir antes mesmo de sair da cama.

Acompanhar Samuel transitar por toda Maceió — e não só pelos cartões postais onde o mar da orla da Ponta Verde recebe os cuidados turísticos, mas também nas grotas sob o olhar sanguinário do vigia — em sua saga homérica pelo fim da informalidade, é como olhar num espelho convexo. O senso de responsabilidade que o guia é também o que queima sua pele: suas subjetividades, sua cultura, seus sonhos devem ser domados para caber dentro de uma fantasia empregatícia. Peles negras, máscaras brancas.
Enquanto a cidade se parte em duas, Samuel se vê numa encruzilhada. Faça a coisa certa.

Se para Fanon (1952) falar é “sobretudo assumir uma cultura, suportar o peso de uma civilização” à direção de Janderson Felipe e Lucas Litrento gritam suas referências construindo o filme na coletividade.
Suas personagens que poderiam ter saído dos ensaios da Lélia Gonzalez, a plasticidade que recriou o trabalho de Fanon, ou até mesmo ecoando Fidel quando diz que “a prática revolucionária não é apenas um ato político, mas também cultural”. Transitando pela comédia chapliana ao suspense, em um sarcasmo que só quem escreve de dentro da classe trabalhadora poderia ter, do enredo até a feitura do filme tudo é revolucionário.

Ao discutir — e viver em — um sistema tão distópico que mais parece um pesadelo, os diretores criaram aqui um enredo que se rasga, dilacera de uma maneira estranhamente reconfortante. A narrativa cheia de espelhos, tão nossa quanto de Samuel, que expressa de forma tão corpórea, o que é sentido e se faz sentir partindo do mais subalterno da periferia do capitalismo. O mundo é um moinho.

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