Crítica: Bem no Fundo das Retinas (dir. Mik Moreira)

Texto: Flaminhia Gomes da Silva. Revisão: Leonardo Amaral

O “ O UNIVERSO NO OLHAR” DE BEM NO FUNDO DAS RETINAS

Ao vermos uma foto colorida, nosso cérebro emite automaticamente vários comandos para que nossos olhos processem aquela imagem. Quanto mais cor, mais comandos serão necessários, mais atenção nos será demandada. Uma atenção pulverizada. Podemos até enxergar tudo o que está na imagem, mas o foco no que está sendo retratado é limitado. Biologicamente, as cores nos distraem.

Uma fotografia em preto e branco significa ausência de informação e com essa ausência, nossa capacidade de foco se amplia e os sentimentos despertados também mudam, se aprofundam. Passamos a focar no que está sendo de fato retratado.

Sebastião Salgado, por exemplo, um mestre da fotografia preto e branco, sabia que para retratar fome, miséria e seca não poderia distrair as atenções. A percepção e o sentimento deveriam ser imediatos. E, claro, não se pode deixar de mencionar o grande fotógrafo alagoano Celso Brandão que também se utiliza da mesma técnica para falar, com espiritualidade, sobre a arte e a vida alagoana.

Em Bem no Fundo das Retinas, Mik Moreira nos traz a história de seu avô, que era fotógrafo e perdeu a visão. A vida do fotógrafo é retratada a partir de suas falas. O preto e branco do filme dá mais força à história, nos absorve e reforça o protagonismo do seu avô. A despeito das limitações da idade e da cegueira, ele consegue transmitir, justamente pelo olhar, sua paixão pela fotografia. As lágrimas que rolam do seu rosto são profundamente tocantes, fazem sentir que ele lembra e sonha e sente aquele amor sempre bem no fundo das suas retinas.

O filme é metalinguístico, pois usa abundantemente a fotografia para falar sobre fotografia e de um fotógrafo. As cenas oscilam entre foco e desfoco, como um lembrete do que era e não é mais. Era e não é mais, era e não é mais. As fotografias em sépia são manejadas lentamente por Mik com movimentos que denotam muito carinho e orgulho por seu avô e sua história. Há uma obstinação em contar essa história calmamente, para que possamos digerir bem a preciosidade que aquilo representa para ela. Imagens dos olhos da neta e os olhos do avô se fundindo num borrão, num desfoque, permite um contraponto entre juventude e velhice, entre gerações de fotografia.

A montagem também merece ser mencionada. Os cortes acontecem enquanto o avô fala, o que deixa a história, que é feita só de narrações, mais dinâmica e mais rica. Temos um “L cut”, o áudio do primeiro corte se prolonga e é transferido para o segundo, e também um ‘J cut’, pois também há o movimento do áudio chegando antes da imagem do avô falando. Se tivéssemos que assistir apenas a imagem do idoso falando, talvez fosse entediante mesmo com uma bela fotografia. Os cortes feitos no tempo certo enriquecem visualmente. Sendo preto e branco, podemos captar cada corte mesmo quando é rápido. As imagens são picotadas, mas ainda assim a história fica homogênea e coerente, absorvendo o espectador.

Na maior parte do filme não há trilha sonora, somente a narração do avô e o barulho do ambiente. Em regra, o que se espera é que isso deixe o tom documental mais escancarado, que seja mais perceptível. Mas é só no final, quando ouvimos a voz de Noel Rosa, que lembramos que não havia som, tamanha a dramaticidade das imagens, proporcionada também pela edição.

Bem no fundo das retinas nos proporciona um deleite visual e emocional, uma história profundamente cativante sobre imortalizar uma pessoa tão amada por meio do audiovisual. Uma história que é arte por si só.

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