Crítica: Biribinha: Na Fronteira do Riso (dir. Lara Araújo)

Texto: Jamerson Soares. Revisão: Larissa Lisboa

A epopeia de um palhaço sob a ótica da dualidade é vista em ‘Biribinha: Na Fronteira do Riso’

O drama e a comicidade se entrecruzam nas grandes paredes de lona de um picadeiro que já passou por muitas tempestades. A trupe de trabalhadores é comandada por um palhaço-ator que utiliza da poesia para misturar elementos da sua própria vida à arte de fazer rir. Não é fácil arrancar boas risadas de uma plateia, ainda mais quando o drama vivido no real, sem máscaras e personagens, tira o palhaço do eixo de protagonista, deixa o palhaço no olho do furacão, rindo da dor e com a dor do que se vive no cotidiano.

Em “Biribinha: Na Fronteira do Riso”, dirigido por Lara Araújo, a vida real ora se confunde com o sonho e a fantasia, ora é subvertida em faz de conta teatral, tendo como anti-heroína a tragicomicidade. O curta documentário de 17 minutos e três segundos é uma epopeia do irreverente Teófanes Antônio Leite da Silveira, mais conhecido como Palhaço Biribinha, que há mais de 60 anos trabalha no ramo da palhaçaria em Arapiraca, no Agreste de Alagoas, levando espetáculos de circo-teatro para as praças e lugares de cultura em todo o Brasil.

Pelo que foi percebido na tela de cinema do Arte Pajuçara, durante a 14ª Mostra Sururu de Cinema Alagoano, o filme é dividido em três partes. A primeira: o nascimento do menino Teófanes na Bahia, sua infância no picadeiro, a relação profunda com o pai e a mãe, as memórias dos primeiros trabalhos na área e a influência dos pais para sua formação no circo. 

A segunda: o seu desenvolvimento como diretor, ator e palhaço, o crescimento da sua popularidade em Alagoas, suas relações com o trabalho e a vida cotidiana, a descontinuidade contínua  de seus processos criativos, e as tragédias que o acometeram: a pandemia e a enchente que destruiu quase todos os seus materiais de trabalho. E a terceira: a esperança que o personagem Biribinha proporciona para a vida do ator Teófanes e os resultados dos seus trabalhos e esforços.

É possível ver constantemente o embate contemplativo e complementar das dualidades: o drama advindo do pai e o riso da mãe, o ser ator e o ser palhaço, a montagem da lona do picadeiro e a desabamento de tudo, fraquezas e perseveranças, tudo interligado ao drama e à comédia, símbolos que são a base do teatro. 

O roteiro de Lara foi executado como uma espécie de colcha documental de retalhos, em que imagens antigas se mesclam à atualidade e que também revelam uma terceira persona no palco: o Biribinha, “é porque Teófanes não existe mais”, diz o personagem, que aparenta ser o outro corpo mais bobo e angelical de Teófanes. Ambos são uma só pessoa, ocupam um só corpo. E é essa dualidade mística que mais encanta no filme, além das belas imagens do cotidiano do ser ator, Teófanes, e seus aforismos e percepções acerca da sua vivência no circo. As pessoas chegam a chamar Teófanes de Biribinha, mais do que Biribinha de Teófanes. Biribinha é como se fosse um nome de identidade, de nascença.

O clímax da obra é a passagem de Teófanes pelas águas da enchente e a Hidra de Lerna da pandemia, que fazem desse momento o foco do conflito da narrativa, gerando também uma certa aflição. Teófanes ali parecia um Sísifo clamando por piedade, tentando se estabilizar na corda bamba do sistema que aniquila gradativamente a energia do artista. Teófanes ali parecia estar exalando vulnerabilidade e força: o corpo de um homem frágil sustentado e acolhido pelos braços de um palhaço.

Apesar da linearidade do filme, que para muitos pode parecer cansativa, o curta foi acompanhado de uma trilha sonora refinada, sob autoria de Olegário Lucena, que, de uma forma artesanal e poética, potencializou a comoção em determinadas cenas. Para cada parte do filme tinha uma composição, e em cada composição havia alguns sentimentos de perda, de bonança, de nostalgia, sonho, alegria, angústia e aconchego. O som empolgante do violão, o lamento da sanfona e o regozijo da gaita ao fundo, entorpecem as imagens de sofisticação.

“Biribinha: Na Fronteira do Riso” faz da dor um atalho para o riso, uma ponte para a catarse, um percurso de um corpo em desassossego para o outro lado do mar da infância. É um filme em que as imagens se tornam o próprio narrador. Foi até surpreendente ver que o curta não recebeu nenhum troféu ou menção honrosa na Mostra, já que é mostrada a história de um dos ícones da arte e da cultura popular do estado.

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