Crítica: Escreva (dir. Tuanny Medeiros)

O OLHO VÊ, A LEMBRANÇA REVÊ E A IMAGINAÇÃO TRANSVÊ. É PRECISO TRANSVER O MUNDO   

Revisão: Larissa Lisboa e Felipe Benicio. Imagem: Divulgação.

O curta-metragem Escreva, de Tuanny Medeiros, exibido dentro da programação da I Mostra Quilombo de Cinema Negro, promovida pelo Mirante Cineclube, remete à importância do “olhar para si mesmo” e perceber a partir daí ao quanto do que somos hoje é correlato ao conjunto de influências e experiências que estiveram dispostas durante toda a nossa existência individual, guardadas nas relações intrínsecas do ser e da sua realidade, incluídas as participações da família, do lugar, das ideologias e, de algum modo, do quanto se está atento e antenado ao meio que nos cerca.

Por esta razão, ao exprimir seus recados por meio de retratos e registros históricos particulares, direcionando sua mensagem à menina que foi na infância, Tuanny dialoga com o que há de fundamental à natureza humana e com a distinção que nos torna únicos, sendo cada um de nós o resultado materializado daquilo que lemos, ouvimos, buscamos e escrevemos.

Entende-se a escrita, neste contexto, como a forma de tornar concreta a própria existência e transmitir para além de si os registros daquele momento, para não apagar a ideia e assim evitar o esquecimento ou o distanciamento daquilo que nos move e nos torna interessantes, conscientes. É a forma ainda que se tem para não ser traído pela memória fugidia que embaralha o que foi vivido com aquilo que conseguimos captar e elegemos como digno de recordação, ainda que fantasiosa.

Assim, agir de modo a ser consciente das próprias origens, a partir do reavivar de memórias e registros, é o que nos torna convergentes hoje com o que seremos amanhã, é o que nos equilibra no fio da coerência para não nos conformarmos em reproduzir posturas que outrora condenamos.

Logo, sob o risco de virar uma caricatura ou esboço longínquo daquilo que proferimos quando precisamos nos definir para outrem, ou viver sendo apenas coadjuvantes desarmados de iniciativas próprias, importa tomar como norte a revolução de si mesmo, permanentemente, nos tornando mais fortes à medida que tomamos maior consciência das nossas capacidades e também das possibilidades de aprendizado com a coletividade circundante.

Neste sentido, ressalta-se que, apesar do aspecto singular e autobiográfico da obra, representado pela forma utilizada de narrativa em off sincronizada com imagens e projeções de um passado específico, existe ali uma gama de elementos capazes de gerar identificação imediata do espectador, seja pelo aspecto sentimental, seja pela possibilidade de revisitar a própria trajetória e circunstâncias que hoje nos moldam e nos direcionam na incessante busca do bem viver.

Ao mencionar para si mesma a necessidade de ouvir e estar próxima aos seus familiares, Tuanny nos põe também como receptores daquela mensagem, passando a associar características da nossa própria trajetória com o que é ouvido e mostrado ao longo de pouco mais de dois minutos de duração, valorizando os vínculos sociais e laços afetivos que permeiam as conquistas e angústias de cada um e ampliam o nosso senso de pertencimento e comunidade, servindo como ponto de partida e apoio moral para cada decisão individual, a fim de evitar a luta irremediável com a imutabilidade do passado, para que, deste modo, se reconheça e desfrute daquilo que hoje se faz presente e sensível, seja tomando um café com os avós, ou ouvindo a sua criança interior.

Ao considerar a relação construída no curta através da proposição de um diálogo imaginativo, capaz de transfigurar a realidade com o intuito de perceber suas minúcias e afastar-se das limitações materiais e de linearidade do tempo, é que se busca transver o mundo – conforme a poética de Manoel de Barros – em sua dimensão periférica, oblíqua, insinuante – afastando-se do óbvio e percebendo as miudezas dispostas ao nosso redor em sua totalidade enviesada e múltipla.

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