Crítica: Ilha das Flores (dir. Jorge Furtado)

Texto: Leonardo Hutamárty. Revisão: Larissa Lisboa

Ilha das Flores (Dir. Jorge Furtado, 1989) é um curta-metragem gaúcho, de gênero híbrido, cujo mote diz respeito ao retrato desumano da “racionalização” de um sistema econômico e monetário. O filme é herdeiro de um esteticismo genealógico muito específico, que se iniciou com Triste Trópico (Dir. Arthur Omar, 1973); mas, ao longo dos anos, tornou-se uma referência singular no âmbito escolar e acadêmico. E apesar das contradições envolvendo o seu impacto na comunidade em que foi filmado, retratadas no curta Ilha das Flores: Depois que a Sessão Acabou (Dir. Editorial J, 2011), há muito é considerado uma pérola no repertório do cinema brasileiro.

Ao longo da história humana, frequentemente a fé, a religião, Deus e certas ideologias são usadas de subterfúgios para se agir com irracionalidade sobre terceiros, permitindo ou mesmo cometendo graves barbaridades. De forma impassível é que Jorge Furtado expõe na tela inicial de seu curta uma das primeiras definições que o filme ainda efetuará, o letreiro: “DEUS NÃO EXISTE”. Com isso, assume um discurso sem retorno, arriscando-se a ser até incompreendido.

O roteiro então apresenta a trajetória de um tomate, que vai desde a sua colheita em uma lavoura, pelo senhor Suzuki; passando por um supermercado, onde é trocado por dinheiro, ao seu posterior descarte, quando a dona de casa Anete percebe que ele já se encontra apodrecido; até chegar ao aterro sanitário da Ilha das Flores (Porto Alegre). Nesse primeiro momento, o que ocorre é uma representação lógica das etapas dos setores de um sistema monetário simplificado, tais quais o produtivo e o de consumo. Em seguida, presenciamos nessa Ilha mulheres e crianças, que vivem em estado de indigência, disputando comidas do lixo, que sequer servem de alimento para os porcos. A narrativa então escancara esse abismo social, esse estado de injustiça para com os que, na organização econômica, não possuem dinheiro (sendo este o novo Deus?).

A decupagem, isto é, o modo como o roteiro é traduzido em planos, vai se constituir sobre uma estrutura narrativa que segue a lógica do hipertexto, em que uma figura textual faz elo com outra, ora por simpatia e proximidade, ora por oposição. Por isso, ela lança mão do método livremente associativo de imagens (como a da pintura do Cristo na cruz, de Matthias Grünewald, ligada com as dos judeus em campos de concentração); do procedimento artístico de colagem animada (como o salto da baleia, e o telencéfalo da mulher em forma de engrenagem, transitando para circuitos, palavras e gráficos); de uma montagem em ritmo automatizado (como a trajetória do tomate que é reproduzida aceleradamente ao final); e da narração em off que, com um texto categórico, expõe uma série de definições de conceitos (desde o que é um japonês até o que é uma prova de história).

De modo que, essa lógica interna do filme, movida principalmente pelos elementos de voz onisciente e de associação de imagens, frequentemente conflitantes entre si, cria uma rede de significações que propulsiona o efeito de seu epílogo. Essas significações são de caráter diretamente político; posto que, na Ilha, Deus não existe, então ele não pode ser culpado pelo que quer que seja. Como resultado, nós, espectadores, assimilamos a representação do âmbito do absurdo (das mulheres e crianças catalogando alimentos do lixo) de modo hiper-racionalizado, e nos defrontamos com o espanto e a indignação.

Como sequela da mecânica falsamente racional do sistema capitalista, que visa o processo de máxima acumulação do capital, criando a distância social pela marginalização; decorre o estado de não proteção social — de não garantia da redução de vulnerabilidades, de fragilidades e dos riscos de ordem social, política, econômica e natural —, na época, vigente na Ilha das Flores. O censo demográfico até aponta que o grau de pobreza e miséria no Brasil da década de 1980 não era pequeno.

Diante desse cenário foi que Furtado se propôs a fazer, com didatismo e pitadas de ironia, algo que é mais que apenas um filme denúncia. E dada a ausência de políticas públicas efetivas para minimizar a distância social generalizada no país, o diretor ainda voltou, anos mais tarde, a abordar o tema da justiça social, do significado do dinheiro, do sistema capitalista e da desigualdade de oportunidades, em O Homem que Copiava (Dir. Jorge Furtado, 2003). Longa que narra a trajetória de um operador de copiadora que, insatisfeito com a sua condição financeira, decide falsificar notas de dinheiro.

No fim das contas, Ilha das Flores revela o retrato desumano da aparente racionalidade do mundo capitalista, e serve para nos lembrar da necessidade sempre presente de reivindicarmos políticas públicas que forneçam, precisamente, direito à igualdade de oportunidades, ações em defesa das minorias e garantias de proteção social — àqueles que possuam ou não o telencéfalo altamente desenvolvido e o polegar opositor, mas que sejam simplesmente cidadãos deste país.

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