Crítica: Isso Vale um Filme (direção coletiva)

Texto: Beatriz Vilela. Fonte: Oficina de Crítica Cinematográfica

Recordações de um cinema de bairro

Isso vale um filme me encantou. O ponto forte deste documentário produzido pelo Ateliê Sesc de Cinema é trazer à tona uma discussão sobre antigos espaços de exibição conhecidos como cinemas de rua. Esses cinemas entraram em decadência e perderam prestígio a partir dos anos noventa. Aqui em Maceió, restaram apenas as memórias. Ao tomar como mote as recordações de ex-frequentadores, o curta dirigido coletivamente preserva lembranças de um passado, mas também se torna o lugar de onde se reivindica um presente. As narrativas dos moradores do bairro do Poço me levaram para um tempo que não vivi, e me fizeram sentir saudades de um lugar que não frequentei.

Antes de chegar nessas memórias somos conduzidos por estórias de malassombro que permeiam o Cine Plaza, como fossem a chave para abrir as portas do cinema. Deste modo, para trazer leveza à situação atual dos cinemas de rua, o curta traz algumas cenas desse imaginário de medo que se construiu em torno do espaço. O que serve também como metáfora para outros cinemas de rua abandonados pela cidade.

O filme começa com um plano aéreo do Vale do Reginaldo, lançando um olhar sobre as grotas de uma Maceió periférica, por vezes invisível. Uma sequência muito bem construída, que aos poucos aterrissa e se junta a um grupo de crianças brincando de esconde-esconde. É como se um observador panorâmico estivesse pairando sobre aquele lugar e descesse para observar aquela brincadeira, enquanto a condução da câmera e o som começam a introduzir certo suspense à trama.

O peso simbólico do antigo cinema começa a ganhar força quando uma criança decide se esconder por lá. O garoto explora o espaço com receio e assim se mantém até encontrar seres supostamente sobrenaturais. Nesta, que é a parte mais ficcional do filme, a brincadeira encenada entre esses seres e as crianças tenta representar o imaginário de lendas que se construiu no/sobre o cinema.

Ao longo do curta somos guiados por dois homens que frequentavam as antigas salas, para conhecer ou rever os cômodos do ambiente. À medida em que eles caminham sobre as ruínas, rememoram como os risos, as lágrimas e os beijos deram lugar ao abandono, traças e sujeira. Mais do que um imóvel abandonado, aquele é um lugar impregnado de recordações e o ponto forte dessas cenas é o registro que ela faz dessas emoções vividas. A fala dos rapazes e as imagens das ruínas me remeteram ao desencontro promovido pelas novas formas de exibição que suplantaram velozmente esses espaços, como as salas de exibição nos shoppings.

O momento mais tocante do filme é quando a voz de Elinaldo Barros surge com algumas questões sobre aquele cenário. Notei nela um tom de lamento, saudades e sobretudo, de tristeza, ao indagar “o que aconteceu com um imenso cinema vazio de público e sem o brilho das imagens”. Não foi só a voz que me tocou, mas de onde ela vem. É a voz de quem contribuiu para o cinema alagoano e hoje se depara com as ruínas dos cinemas de bairro. Não é a toa que o título desse texto é homônimo ao titulo de um livro seu que relembra outro cinema da cidade: Cine Lux – Recordações de um cinema de bairro (1987).

Um recurso que se mostrou interessante para a abordagem documental foi o uso de fotografias espalhadas nos escombros, com a intenção de espalhar lembranças e contrapor presente e passado. As falas dos antigos frequentadores, homens e mulheres, funcionam como legendas dessas fotos, que remetem a um Cine Plaza vivo, intenso e animado. A partir das recordações somos levados às sessões, vemos como as mulheres vestiam-se, sabemos mais dos flertes e filmes que mais gostavam, como também percebemos como era divertido para os rapazes assistir um filme “adulto”.

Essas memórias me levaram a perceber um presente com muitas descontinuidades: a prática cinematográfica, o prazer da convivência, a descoberta de um filme, o encanto de uma exibição, uma miríade de experiências que se perderam.

Em algumas cenas uma figura significativa do folclore brasileiro, o bumba meu boi, se mostra como uma força ambígua. Em diferentes situações e espaços, este brinquedo da cultura popular simboliza a esperança e o medo. O boi como o ser que assusta os que se aproximam do Cine Plaza, mas que também espera ser retirado das ruínas para dançar, ou no caso, assistir um filme.

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