Crítica: O Juremeiro de Xangô (dir. Arilene de Castro)

Texto: Diogo Souza. Fonte: Oficina de Crítica Cinematográfica

Efusões da Jurema que pulsam através da tela

A chama e a noite, elementos que produzem, geralmente, uma aura de mistério, foram os elementos utilizados pela direção de arte de O Juremeiro de Xangô (2016), de Arilene de Castro, para introduzir o ambiente da compreensão lacunar da Jurema, prática religiosa que diz respeito a uma entidade espiritual de origem nordestina e indígena. Em um país como o Brasil, tão diverso culturalmente e tão intolerante religiosamente, um filme como este possui importância social muito grande.

O prólogo foca na atriz Linete Matias narrando alguns cantos da religião, criando um clima ficcional que envolve a construção da narrativa. Sua voz entoa algumas frases pertencentes à atmosfera do culto de forma misteriosa, tal qual a religião. Somente aos oito minutos é que conhecemos, de maneira mais direta, a personagem principal da história, pois até então havíamos escutado apenas a atriz e uma voz sem “rosto”. Assim, temos um trânsito de protagonismo: da história da Jurema em si para a história da relação dessa religião com Pai Alex de Xangô, mestre da Jurema.

Nessa mudança de perspectiva, saímos da escuridão noturna e adentramos em uma iluminação ofuscante, como houvesse um desejo de marcar o deslocamento do tom ficcional, mais indeterminado, para um tom de documentário, mais claro e objetivo. Ao início dessa nova narração, vemos o corpo de Pai Alex se aproximar aos poucos da câmera. É como se, antes de se colocar perante à câmera, ele se colocasse diante de nós, como se concedesse, aos poucos, permissão para o filme assumir também a sua fala. A partir desse ritmo, conhecemos mais sobre a religião através do ponto de vista de dois praticantes dos rituais da Jurema.

Fiquei seduzido pela forma como o filme fez a interface entre apresentar o perfil das pessoas que seguem o ritual com as canções que compõem os cultos. Como a Jurema possui uma relação com a natureza, e, em especial, com a árvore, os momentos declamação da história oral desse povo foram bastante poéticos, principalmente pelas imagens evocadas, que provocavam outros sentidos além daqueles emitidos pelo texto narrado.

Em tom de cinebiografia, Pai Alex conta um pouco sobre a sua história com o Xangô, dos seus caminhos por outras religiões. É perceptível o quanto ele está à vontade em frente a câmera. Como o tema tratado é muito pessoal e ainda repleto de preconceitos, penso que a produção do filme ofereceu um contexto para que ele pudesse falar de sua vida de forma “natural”. A inclusão de um pesquisador, para mostrar mais os preceitos da religião, foi algo, a meu ver, ousado, uma vez que, a depender da pessoa, essa inserção poderia fornecer outro tom ao documentário, fazendo-o perder a sua leveza de até então. Isso não aconteceu. O professor Clébio de Araújo, da Universidade Estadual de Alagoas, apresentou o seu olhar de forma simples e até didática, dialogando com as imagens e depoimentos já exibidos.

A edição utilizou pequenos espaços para enfatizar alguns elementos componentes da Jurema. Cito aqui a fumaça, presente tanto na tipografia do título do filme, como também nos créditos de apresentação das pessoas que nele estavam. A fumaça, como forma de efemeridade e de efusão, dos chás e dos fumos específicos da religião, foram colocados frequentemente diante do observador, numa espécie de atividade de aproximação e conexão do tema tratado através da visualidade.

Um ponto que me incomodou foi a não permanência da atriz Linete Matias no decorrer do filme. Sua presença poderia ter sido mais aproveitada. Além disso, em um documentário que às vezes se esconde um pouco do espectador, algo próprio da temática que aborda, vejo como desnecessário a incursão da infância de Pai Alex com a construção de uma cena ficcional. Aqui, acredito ter sido entregue uma parte da história que poderia ser formulada em nossa imaginação, ao ouvir as palavras do protagonista do curta-metragem.

A Jurema, ainda tão pouco conhecida em Alagoas, é um patrimônio cultural do eixo Pernambucano – Alagoas – Paraíba. Conhecer mais sobre a sua origem, ritos e formas de apropriação a cultura indígena é um exercício que nós, como nordestinos, devemos fazer, não apenas para desfazer conceitos preestabelecidos, como também um modo de entrar na história do nosso lugar. Para mim, que conheço pouquíssimo a cabocla Jurema, o curta-metragem produziu efeitos informativos, além dos estéticos, firmando o bem planejado trânsito entre ficção e documentário.

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