Crítica: Recife Frio (dir. Kleber Mendonça Filho)

Texto: Leonardo Hutamárty. Revisão: Larissa Lisboa.

No âmbito de uma aparente simplicidade, sobretudo por explorar as liberdades possibilitadoras da ficção, Recife Frio (2009) trabalha com a sublimação (ou elevação à altura) dos elementos subversivos de sua linguagem e do seu próprio universo dramático; visto que, por imbuir a dimensão do espaço e a realidade da narrativa com componentes de reconhecido cunho adventício (com a presença do “estrangeiro”), ele se preocupa em desvelar muitos dos problemas sociais já enraizados na cultura.

Uma vez que, por julgar justamente que nós (brasileiros), devido a certa mentalidade, possuímos uma relação curiosa (para não dizer estranha) com o frio, isto é, tendemos a achá-lo como signo de sofisticação e exotismo, Kleber Mendonça Filho a si fez a pergunta: “O que acontece a uma sociedade, cujo habitat é naturalmente tropical, se ela subtrai à sua questão climática?”, e desde já partiu para fazer um mockumentary que negasse o frio como signo de sofisticação, por meio de sua narrativa, e, ao categorizá-lo no gênero sci-fi, se consolidasse através de um molde nada sofisticado (o de reportagem televisiva).

A história vai tratar das consequências sócio-políticas da ocorrência de um fenômeno de natureza inexplicável; cuja premissa é a de que, a se passar num futuro próximo, um meteorito (que muito se assemelha a um rojão) cai sobre a Praia de Maria Farinha, localizada na região metropolitana do Recife (PE), e a cidade, vendo-se condenada a um absurdo enclave de um microclima, deixa de ser tropical para que passe a ter até pinguins em sua fauna. Com isso, a narrativa simplesmente mapeia alguns setores da sociedade, revelando as reações frente a determinada alteração climática.

Do mesmo modo que o diretor, do ponto de vista pessoal, nega o frio como signo de sofisticação, o filme rejeita o que se entende por uma sofisticação técnica (da minitrama da nossa tendência perceptiva, e do intimismo poético de certo ideologismo cinematográfico), além de jamais romantizar o frio – de maneira tal que, caso a primeira experiência com o curta tenha sido de estranhamento, por já possuir o estigma de que o frio é signo de sofisticação e beleza (ou mesmo devido a propaganda), é sinal de que o espectador foi o próprio alvo da crítica na qual o filme se debruça.

Segundo a perspectiva, a explicitação dos componentes narrativos de caráter externo se dar por, antes, haver uma subversão dos elementos duais da linguagem (calor que vira frio; suíte que é trocada por quarto de empregada; canto popular que sucede a erudição de uma trilha clássica; linguagem de reportagem que ostenta um molde de cinema, etc…). Enquanto esta sublimação serve ao humor entreposto na sua esfera dramática – juntamente com a comicidade do absurdo das relações cotidianas (tais quais sátiras) a se evidenciar por meio de um naturalismo cru de seus personagens –, a subversão (que vai encontrar mote no conceito de estranheza), por outro lado, age em favor de sua síntese, ou seja, de desvelar os problemas sociais arraigados na cultura.

Dos componentes da narrativa, o aerólito, sobretudo, por ser um corpo rochoso que vem do espaço, já é assumido como aquilo que é adventício e anormal. O frio presumivelmente desejado, torna-se a estranha desgraça para os que com ele vivem. Os pinguins, do mesmo modo, são atípicos até num país como a França. E pelo filme adotar o seu molde de reportagem, o repórter (estrangeiro) falando espanhol em terras brasileiras é mal compreendido pelo espectador. Dos artifícios formais, a decupagem, ao se aproveitar de imagens de arquivos (ádvenas) que, tanto do ponto de vista rítmico quanto de sua proporção, deliberadamente não se encaixam tão bem (publicitárias, animações, registros de celulares e de câmeras de segurança), e de fotografias mal tiradas (cientistas analisando o meteorito) como o seu conteúdo cinematográfico, termina por, efetivamente, poluir o dispositivo.

Dos elementos dramatúrgico, a figura da empregada, que costumava viver confinada num cubículo sem janelas e superaquecido, passa a dormir na friorenta e ventilada suíte, enquanto que o filho do patrão, por sua vez, domina o seu antigo quarto. O idoso que trabalha como Papai Noel aos finais de ano, e que sofria com as suas condições de trabalho (roupas quentes no verão recifense), vê-se agora com certa vantagem. Os moradores de rua, que eram invisíveis aos olhos do poder público, começam a se evidenciar ao morrerem de frio e lotarem os necrotérios. O telejornal, que compartilhava fatos do cotidiano, ao falar do clima, e anunciar uma exposição de fotografias sobre estranhas nuvens no céu, capitadas por presidiários de dentro da cadeia, já se revela naturalizado a notícias do âmbito do absurdo e do surreal. As figuras folclóricas e culturais da cidade, tais quais casinhas e bonecos artesanais, que outrora expressavam a quentura sertaneja e marítima dos trópicos, são confeccionadas com chaminés, luvas e calças, assim, viram-se às avessas. Além dos turistas e das mercadorias regionais que desaparecem.

Dessa forma, através da sublimação dos elementos subversivos de sua linguagem e do seu próprio universo dramático, é que o filme desvela os problemas sociais que existiam antes mesmo do fenômeno de natureza inexplicável, consolidando-se em seguida como uma obra saudosa. Já que, para além de tal arsenal simbólico disposto a falar de questões de uma importância fundamental, predomina-se toda a simplicidade de sua abordagem (de seu molde estabanado, fazendo uso de uma trilha sonora própria de filmes B de ficção-científica, e cujo dispositivo tem o objetivo não único de informar à que entretenha). A utilização potencial do gênero da ficção, segundo a ótica, é também o que reconduz a síntese, numa abordagem orgânica (pois as sequências se moldam ao longo da duração, e frente a determinados núcleos dramáticos), além de configurar uma congruente flexibilidade das estruturas de linguagem.

Tomando a Grande Recife como representação, a narração também tece uma crítica à desumanização das grandes cidades. No cômputo geral, argumenta que, enquanto o calor é uma condição climática que dilata os corpos, e o frio é justamente o que os comprime; é em consequência do espaço urbano caótico contemporâneo (de paisagens de linhas e ângulos retos, estéreis e repetitivas), da qualidade inóspita das ruas de nossas cidades (com uma especulação imobiliária fora de controle), e dos shoppings centers e condomínios fechados como refúgios habitacionais, que o elemento humano tem sido “achatado”. A fazer uso de um efeito de representação simbólica, o roteiro por fim nos conduz a uma ciranda na praia, realizada por moradores do Recife; em seguida, vemos as nuvens escuras do céu de súbito se moverem e abrirem espaço para um feixe de luz do sol, que é “abraçado” por aqueles que dançavam.

No fim das contas, o filme subverte a realidade climática da capital pernambucana, ao evidenciar o ordinário das relações sociais e, do mesmo modo, os problemas arraigados nessa cultura (o legado da escravidão; o medo da violência; o urbanismo agressivo; a autossegregação socioespacial; e a extrema pobreza), no propósito último de saudar o calor, a arte popular e a tropicalidade da cultura (quintessência) de nosso país. A homenagem se confirma na figura dos dois repentistas, do comerciante de artesanato e, sobretudo, no canto de Lia de Itamaracá; visto que, em planos fechados, quase que a perpassarem o quadro, a sabedoria e a arte popular dão fôlego e vida a sua abordagem tão caracterizada de exterioridade e estranheza.

3 Comentários em Crítica: Recife Frio (dir. Kleber Mendonça Filho)

  1. Pelo que eu entendi o mundo que vivemos hoje é totalmente inverso do antes a cultura a sabedoria é um novo mundo no meu ponto de vista esse filme me mostrou que a visão do que vivemos hoje temos muitos que aprender Esse é o meu ponto de vista a sabedoria a cultura é um novo conhecimento que buscamos

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