Crítica: Saneamento Trágico (dir. Zazo)

Texto: Lucas Litrento. Revisão: Janderson Felipe.

Na Brejal, a água junta tudo

Em 1962, o escritor americano Ralph Ellison publicou o romance Homem Invisível, um marco da literatura afro-americana, onde o protagonista é invisível não por ter adquirido um superpoder, mas por ser um homem negro numa sociedade racista e higienista. A metáfora funciona muito bem porque é bastante literal, quase uma ironia. E esse apagamento não é fruto de uma fórmula mágica, é o Estado que cumpre esse papel. O que vemos em Saneamento Trágico (2018) é um bairro invisível. Inundado, cercado de esgoto e lixo, mas invisível aos olhos das camadas mais ricas da sociedade.

Essas contradições, muitas vezes soando como irrealidades, são muito bem expostas por Zazo, diretor, montador do filme e morador da Vila Brejal. Expostas mesmo, aqui o adjetivo chega muito próximo da estética crua do filme. Não existe o foco no refinamento da linguagem cinematográfica, a angústia de Zazo falou mais alto. A necessidade de documentar a realidade cruel dos moradores da sua comunidade é uma inquietação primeira.

E precisamos disso. Nós somos das margens (me incluo porque também sou dessas geografias). Deixem que os marginais falem dos seus, é o que fazemos. A arte denúncia, o cinema verdade é mais que bem-vindo em Maceió. E esse tipo de filme causa um choque, então reflitam: de onde vem esse choque, seria resultado de filmes que não dialogam com essa preocupação? Mas, por outro lado, é necessário? A arte deve ser livre de amarras, ter utilidade nenhuma ou carregar um discurso político que mexa com a normalidade do sistema vigente.

No caso de Saneamento Trágico, a obra balança o espectador quando expõe as contradições gigantescas da nossa cidade pequena. Não é por menos que vivemos cheios delas. Na mesma cidade: crianças disputando comida podre com porcos e bodes de chifres enormes nos fundos do Mercado da Produção e o Parque Shopping, um oásis alienígena formado por clientes brancos e peões negros.

Pôr em xeque a origem do sururu que todos amam e revelar que esgoto na pior forma é despejado diretamente no mar é uma decisão assertiva. As imagens passam, mas a crítica fica. Quando Zazo expõe os beneficiados de tais manobras logo me vem à mente o refrão Maceió, minha sereia e todos os clichês de cidade litorânea.

Ellison, Zazo e eu somos homens negros. Enquanto artista consciente, o negro enxerga o que vem atrás, todos os guetos invisíveis. A obra de arte é o oposto disso, é a visibilidade extrema. Fecha a conta. É claro que vamos nos colocar explicitamente. Talvez a escolha do narrador não tenha rimado muito com a energia do filme, acredito que o próprio diretor poderia assumir esse papel, dando mais ânimo e entrega à narrativa. Nada que atrapalha a experiência fílmica, o que vemos na tela é um pouco das preocupações diárias do povo preto que resiste na Vila.

E o interessante da produção que finca os pés na simplicidade é que, quando bem-feita, lapida pérolas do instante. Uma cena exemplifica isso. A câmera focada na água alagada, um zoom. Poderia ser o recorte de um riacho ou de uma galeria pluvial, mas é uma rua muito alagada, dá pra ver o que parece ser uma calçada. Daí a câmera recua e a água divide espaço com um chão revestido de cerâmica, muda o cenário. Não é mais a rua, mas uma pequena mercearia de bairro, igualmente alagada. Tudo junto. Na Brejal, a água junta tudo. Num movimento de câmera a imagem teletransporta o ambiente e vemos o caos.

Essa passagem em plano-sequência reflete a urgência e resulta numa imagem inventiva e atenta. Resume um pouco o filme. A emoção está na câmera, o desejo de mudança, de denúncia. Sinto que esse sentimento cobre os erros do filme (que consistem, basicamente, em questões técnicas de som e texto da narração).

O documentário tem força porque é sincero, produzido com um objetivo que foi alcançado: mostrar, denunciar. Em alguns momentos flerta mais com o jornalismo do que com o cinema, mas nunca perde sua essência que é o grito.

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