Crítica: Subsidência (dir. Beatriz Vilela e Marcus Souza)

Texto: Tatiana Magalhães.Revisão: Larissa Lisboa.

Onde a vida não mora, o que nos resta senão fugir?

Em uma crise de ansiedade intensa, tomados pela angústia, sentimos uma inexplicável vontade de correr. É um sintoma constantemente relatado em consultórios médicos por pessoas que geralmente negam as doenças da mente, mas que buscam solução para uma sensação que nos faz estranhar a nós mesmos e a própria realidade, ao mesmo tempo em que não sabemos o que nela nos desencadeia tais sentimentos. Em contramão aos pensamentos acelerados, à agonia no peito, às imagens internas sobrepostas, ao vazio sem explicação, o corpo pede fuga, movimento como resposta às ausências. A ansiedade é uma angustiante prisão do corpo no passado ou no futuro, rejeitando a aceitação do presente.

Inicio essa minha viagem sobre Subsidência, de Beatriz Vilela e Marcus Souza, com o coração acelerado. Não porque sou uma das milhões de pessoas que têm de lidar com transtornos de ansiedade (e eu sou) no país que é o mais ansioso do mundo, mas porque o filme me trouxe e ampliou, em poucos minutos, essa sensação solitária de desconhecimento dos mecanismos de controle do corpo, só que projetado socialmente. O corpo que se move no filme, da atriz Gessyca Geyza, não é um corpo-indivíduo. Sua fuga/busca não é pessoal. O terror da solidão, a angústia das casas devastadas, as paredes-labirintos: tudo ali é o sujeito-cidade, cidadão-pertencimento. É a negação desse ser que se constitui no espaço do coletivo. O bairro em ruínas é o vazio que desaba sobre ela. O bairro em ruínas nos constitui em grandes vazios, abaixo e dentro de nós. Onde a vida não mora, o que nos resta senão fugir, e para onde nos leva essa fuga senão mais para dentro dos próprios escombros?

É um filme necessário, diriam, como é. Mas necessária também é a palavra, o falar sobre. Necessário também são os estudos, os artigos científicos e de opinião, as reportagens, as palestras e as manifestações de rua. Necessária é a ação. Em Subsidência, palavra brota feita na parede do que foi, como recordação, desabafo, protesto. A palavra brota, antes, do que não é dito, da angústia manifesta da protagonista, da interrupção abrupta e inexplicável de um sono/sonho. A palavra brota da imagem, verbo passado, advérbio de lugar: a gente foi feliz aqui.

Portanto, acho desnecessário dizer – já dizendo – que o filme é necessário porque isso ainda diz pouco sobre ele. Diz sobre o tema para o qual aponta, a realidade sobre o qual remete, que é nossa, e também é das tragédias da Vale do Rio Doce e de tantas outras em que a exploração das riquezas do espaço se sobrepôs à riqueza do lugar. Mas aqui essa remissão ganha outros caminhos, outros becos vazios, outras vielas, tetos arrancados. Ganha os escombros da perseguição ao quê: ganha a necessidade do outro, a desnecessidade da palavra para explicar o que os olhos só veem quando do alto ou de dentro: abaixo do céu, somos maquete, somos pequenos, somos formigas nos restos do que fomos porque por baixo de nós se movimentam ratos sedentos em busca da riqueza que não vemos.

Poderíamos ter mil abordagens sobre a tragédia da Brasken (em andamento), mas temos aqui um retrato minimizado, urgente e rápido dessa sensação angustiante de não saber para onde ir. O labirinto de vazios percorridos são os espaços mínimos em que a vida ainda corre enquanto memória dolorosa do que não é mais, do que poderia ser. E à medida que os espaços se ampliam é que vemos a dimensão da ausência. Fazer um filme híbrido como esse é uma ousadia bonita de quem sabe que a arte quebra paredes quando em lente de aumento, quando fragmento metafórico de um processo.

Subsidência capta um sentimento que atravessa muita gente, e certamente todos os que vivenciam essa tragédia. E, por isso, ele é para mim não apenas um filme sobre a destruição de vidas e de bairros e de lares e de memórias pela Brasken – e sendo isso ele já é muito – ele é sobre a sensação de vazio que se instala quando não nos reconhecemos mais no que nos cerca. Quando a realidade destrói o que nos rodeia. É um filme sobre como a corrida angustiante de cada um é também uma corrida na busca da sensação de pertencimento. E reconhecer essa necessidade e o quanto somos constituídos pelo coletivo e inseridos num espaço compartilhado é passo essencial para que o presente que angustia seja revolta que transforma. Ele é, ainda, filme manifesto quando revela de onde e para que vem, nos créditos necessários para que alcance outros cantos.

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