Crítica: Wonderfull – meu eu em mim (dir. Dário Jr)

Texto: Eudes Ferreira. Fonte: Oficina de Crítica Cinematográfica

A maravilha de ser o que se é

Ultimamente tem aumentado a produção de filmes voltadas para o público LGBT. Representatividade e tentativas de redenção por parte de seus personagens são temas comuns. No Brasil essa construção e assimilação se acentua devido aos tempos turbulentos que fazem a todos repensarem as ideias de democracia e representatividade, que se reflete nas coisas da vida (no trabalho, em casa, o grupo de amigos, entre outras micro e macro esferas sociais).

Disse há pouco “filmografia LGBT”. É como se gays, trans, lésbicas e afins fossem retratados em filmes que apenas lhes pertencem, e consequentemente, são atrativos apenas para si, como um Narciso que se olha no lago e admira seu reflexo. A experiência que tive com Wonderfull – meu eu em mim, no entanto, foi diferente; não, não digo que o filme é único e peculiar, mas que a tentativa corajosa de Dário Jr. em dar contornos humanistas a seu documentário é louvável. Se por um lado temos a previsibilidade de filmes quanto à parcela LGBT, por outro temos em Wonderfull o gênero desvencilhado dessa etiqueta: é um filme para todos e não para um público específico.

Acompanhamos, então, o dia-a-dia de Natasha Wonderfull – Ma-ra-vi-lho-sa! – nas mais diversas situações. Espontânea e ativa, Natasha conta um estilo de vida que não se difere em tantos aspectos de outras trans de origem humilde e que sonham com uma vida melhor sendo o que se é.

O filme aborda momentos típicos de alegria e melancolia; a ausência da trilha sonora nos momentos felizes reflete a sobreposição do drama contado ali por uma presença forte e risonha; quando aparece a trilha sonora então, triste e minimalista, vemos a humanidade de Natasha sendo posta com mais ênfase, no seu trabalho, por exemplo. A cena em plano fixo, longa, quase silenciosa e tocante é o maior exemplo de construção e desconstrução de uma mesma pessoa e é aí que a parte “fora do meio” encontra uma chance de se identificar com ela ou com sua persona definitivamente.

As cenas gravadas no Centro são outro exemplo disso, de se colocar no lugar de outro para se pensar com a própria cabeça. A ideia pode parecer forçada – por conta das máscaras – já que sabemos que os transeuntes ali não estão para agradá-la, mas para se desnudar tal qual Natasha. Ainda bem que o filme conta com outros momentos que sobrepõem essa pequena falha.

Outro momento refere-se ao “outro lado da vida das trans”. Lógico que não se trata de uma unanimidade, mas podemos perceber duas coisas aí: a primeira é mostrar o tal “outro lado” por meio de Wonderfull, como uma porta-voz das trans; a segunda imediatamente não nega o “um lado”, e esse é marcado pela parte chocante, mas que as estigmatiza, como a prostituição e a vulgaridade, por exemplo. Ora, as escolhas tomadas muito cedo não permitem, de toda forma, que nossa protagonista seja julgada. Isso pode afastar o público, mas não se trata de criar uma identificação por assimilação de modos de vida, mas de encarar o próprio ego em detrimento de suas escolhas, sejam elas quais forem.

Sendo experiente no ramo do show business, Wonderfull chama atenção pela personagem que compõe. Não falamos de um documentário inteiramente performático e o filme deixa transparecer perfeitamente quem é a Natasha do show, aquela que interpreta, a artista que improvisa, e a Natasha mais íntima, a pessoa por trás da personagem. A postura e composição de ambos os ethos são praticamente iguais, mas o magnetismo pessoal de sua figura, que Dario Jr. soube aproveitar de forma exemplar, capta atenção do começo ao fim. Não é exagero falar que Natasha sustenta o filme nas costas sem o mínimo esforço.

O que me toca não é a tentativa de mostrar a protagonista causando identificação com o público LGBT – obviamente o que mais se sentirá representado no filme, independentemente de terem ou não o mesmo estilo de vida ou histórico dela. O contrário seria, de fato, imprevisível, ou quem sabe impensável. Porém, Wonderfull trabalha com uma obviedade necessária. Você pode não se emocionar em nenhum momento do filme, ou sequer se enxergar como parte dele, mas creio que a intenção do mesmo não seja criar um drama sobre “a sofredora que aguentou muita patada na vida”, e sim a de que todos, homossexuais, trans ou seja lá o que for, ainda são seres humanos como qualquer outro e sim, parece que muitas pessoas ainda não atentaram para isso nos tempos de hoje.

O documentário também mostra a real faceta do senso comum. Por mais que se identifique, por mais que se crie uma afeição à sua figura, só é possível saber quem é Natasha, de fato, sendo ela mesma. E foi isso o que Alexandrëa Constantino sentiu firmemente em seu “dia como Natasha”, transmitido ao público num depoimento emocionado. A última cena, com a protagonista a se definir para outras iguais – dentre homens e mulheres – soa, de certa forma, comovente, talvez kitsch, mas ainda assim tocante: ela se despe da personagem e vemos a própria ali. Se você não foi tocado pela cena anterior, essa é sua última chance.

Por fim, temos em Wonderfull – meu eu em mim, um filme muito simples, emotivo, com requintes de humor popular, mas sem dúvida uma entrega de coração. Até mesmo o próprio diretor se identifica com sua obra, não por ela ser sua, mas por representa-lo e a tantas pessoas que captam as vontades de Natasha Wonderfull. Mesmo aquelas distantes dela, ao menos, despertam a atenção para sua humanidade, e se não são como ela, ao menos que enxerguem um retrato de que os futuros filmes LGBT se tornem abrangentes de modo a fazer seu público – ilimitado – de pensar e repensar seus conceitos sobre os outros.

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