“Em Nome da América” mostra momento em que Nordeste entrou na mira da CIA

Jovens norte-americanos que viveram no Nordeste engajados contra o comunismo
Fonte: Assessoria Arte Pajuçara


“Eu tinha escutado relatos de moradores de uma cidade no interior de Pernambuco que davam conta da presença de jovens “hippies” americanos vivendo entre eles nos anos 60 e 70. A história era curiosa para mim, já que ninguém sabia muito bem dizer o que eles faziam aqui. Havia uma série de lendas sobre isso. Algumas engraçadas até, que diziam que Steven Spielberg teria vivido clandestino no Sertão para fugir do Vietnã. Outras histórias envolvendo a prospecção de recursos minerais, rumores sobre a presença da CIA, etc. O que eu percebi foi uma grande desconfiança em relação aos americanos e, ao mesmo tempo, uma memória afetuosa em torno dessa presença estrangeira, que é algo típico de uma cordialidade das pessoas no interior do Brasil”, conta o diretor Fernando Weller sobre a motivação de novo documentário “Em Nome da América”.

O filme, – que abre hoje (26) a programação da mostra Arte Doc no Centro Cultural Arte Pajuçara – lança um novo olhar sobre a presença dos EUA no Nordeste durante a ditadura militar. Cineasta, pesquisador e professor de Cinema da UFPE, Fernando Weller mergulhou na história de jovens voluntários norte-americanos que viveram no Nordeste do Brasil pelo programa dos Corpos da Paz, nas décadas de 1960 e 70.
Ainda no início dos anos 1960, os Estados Unidos promoveram uma série de ações na região com o objetivo de barrar o que era percebido como uma ameaça comunista no campo – as Ligas Camponesas de Francisco Julião – e, ao mesmo tempo, promover uma “modernização” de cunho liberal em um território historicamente marcado pela fome e pela seca. Na mesma época, uma instituição chamada Corpos da Paz, criada por John F. Kennedy e conhecida no Brasil como Voluntários da Paz, trouxe milhares de jovens norte-americanos para atuar em trabalhos comunitários e agrícolas em, particularmente, pequenas cidades no interior do Nordeste.

O documentário de Weller reúne imagens raras da atuação dos voluntários em localidades remotas do Brasil, além de registros históricos desconhecidos, como documentos do Serviço Nacional de Informações (SNI) revelando a articulação entre setores da Igreja Católica e corporações norte-americanas. O filme aborda ainda as contradições entre a política intervencionista dos EUA no Nordeste e as histórias individuais dos voluntários, representantes de uma idealista geração de jovens norte-americanos.

ENTREVISTA COM O DIRETOR
Fernando Weller tem 39 anos e nasceu em Niterói/RJ, onde se formou em Cinema, na Universidade Federal Fluminense. Como pesquisador e acadêmico, dedicou-se ao estudo do Cinema Documentário, particularmente à cinematografia norte-americana dos anos 1960. Tornou-se mestre em Imagem e Som pela UFF e concluiu doutorado em Comunicação pela UFPE, com estágio doutoral na Universidade de Concordia, em Montreal, Canadá. Publicou artigos sobre Cinema Direto norte-americano e canadense. Atualmente, é professor adjunto da Universidade Federal de Pernambuco, em Recife, no curso de Cinema e Audiovisual. Como realizador, pesquisador e roteirista, Fernando atuou principalmente em documentários para Cinema e TV.

Codirigiu “Língua Mãe” (longa, doc., 2010), sobre o músico Naná Vasconcelos, filmado em Angola, Portugal e Brasil. “Em Nome da América” é o primeiro longa-metragem autoral de Fernando Weller, filme que materializa suas preocupações nos campos da linguagem documental e da pesquisa histórica.
Desde 2008, o cineasta vem realizando pesquisas sobre o tema do filme. O roteiro foi selecionado pelo edital Longa Doc do Ministério da Cultura 2013 e recebeu também recursos do 7o Edital Funcultura Audiovisual/ Fundarpe- Governo do Estado de Pernambuco.

O diretor Fernando Weller

PERGUNTA: Como nasceu o projeto?

FERNANDO WELLER  – Nasceu há alguns anos, mais exatamente, em 2012. Na época eu tinha escutado relatos de moradores de uma cidade no interior de Pernambuco que davam conta da presença de jovens “hippies” americanos vivendo entre eles nos anos 60 e 70. A história era curiosa para mim, já que ninguém sabia muito bem dizer o que eles faziam aqui. Havia uma série de lendas sobre isso. Algumas engraçadas até, que diziam que Steven Spielberg teria vivido clandestino no Sertão para fugir do Vietnã. Outras histórias envolvendo a prospecção de recursos minerais, rumores sobre a presença da CIA, etc. O que eu percebi foi uma grande desconfiança em relação aos americanos e, ao mesmo tempo, uma memória afetuosa em torno dessa presença estrangeira, que é algo típico de uma cordialidade das pessoas no interior do Brasil. Então, o que me moveu inicialmente foi essa curiosidade para saber o contexto da vinda dessas pessoas. O projeto inicial partiu desse mito sobre a presença de Steven Spielberg no Nordeste, mas pouco a pouco, quando avancei na pesquisa em torno do tema, percebi que o filme tinha um potencial que ia além dos boatos no Sertão e que precisa encontrar uma narrativa mais sóbria para dar conta da complexidade do contexto histórico no qual eu estava metido.

Que contexto é esse?

Bem, basicamente, no início dos anos 60, os americanos acreditaram (ou fingiram acreditar) que o Nordeste brasileiro estava prestes a se tornar uma “nova Cuba”. Havia filmes, reportagens televisivas e impressas… Um importante artigo no New York Times escrito por um correspondente chamado Tad Szulc alardeava uma situação pré-revolucionária no campo em Pernambuco por causa das Ligas Camponesas de Francisco Julião. Esse contexto um tanto histérico coincidiu com uma ação do governo Kennedy que investiu grandes recursos em um projeto para a América Latina chamada Aliança para o Progresso.
Em paralelo a isso, Kennedy havia criado uma agência chamada Peace Corps (ou Voluntários da Paz, como ficou conhecida aqui no Brasil) que pretendia enviar jovens norte-americanos para diversos países do mundo para atuarem em trabalhos comunitários. Era uma forma de aglutinar um espírito ativista da juventude liberal americana dos anos 60 que lutava internamente por bandeiras dos direitos civis e que se sentia representada pela figura de Kennedy.

Fazia parte também de um grande projeto de construção de uma imagem mundial mais amigável dos EUA e seus cidadãos. Havia uma expressão célebre na época, “the ugly american”, o americano feio, título de uma fotografia feita em Cuba que mostrava um turista americano de cuecas carregando uma garrafa de rum às vésperas da Revolução de 59. Kennedy se empenhou em mudar esse estereótipo visando a disputa simbólica na América Latina que travava contra a ameaça comunista.
Na virada dos anos 60 para os anos 70, a Guerra do Vietnã acabou se tornando um fator que levou parte da juventude norte-americana para o voluntariado civil, o que gerou uma situação bastante confusa: milhares de jovens americanos atuando em países pobres em nome do governo americano. Jovens que pretendiam, justamente, fugir da mais nefasta ação de seu governo na época que era a presença militar no Vietnã.

E como essa narrativa foi construída no filme?

O filme traz essas questões para o Brasil, particularmente para o Nordeste, onde houve intensa atuação norte-americana no período. A cidade do Recife, poucos sabem, abrigava um dos maiores escritórios da USAID (a agência americana de ajuda internacional) do mundo na época. Fomos atrás dessa geração de americanos que vieram ao Brasil e, paralelamente, tentamos desatar alguns nós obscuros sobre a presença americana que nos levaram à Igreja Católica, aos Sindicatos e Cooperativas Rurais, ao Governo Militar e a agências americanas que, segundo alguns historiadores, eram fachada para a atuação da CIA na América Latina. O papel de setores da Igreja Católica e suas articulações políticas e financeiras com o governo americano, por exemplo, é um gancho levantado no filme que precisaria de outro filme para ser discutido em profundidade. Esse é um período da história no qual é difícil identificar mocinhos e bandidos com facilidade. Havia uma intensa articulação política de bastidores que passava quase despercebida aos sujeitos do interior do Nordeste e, muitas vezes, aos próprios voluntários americanos. Pequenos vilarejos como Bom Jardim, no interior de Pernambuco, eram palcos silenciosos de conflitos da Guerra Fria.

Quem eram os voluntários da agência Corpos da Paz?

O perfil dos jovens americanos era diverso. Uma parte vinha tocada pelos movimentos dos direitos civis que varriam os EUA nos anos 1960 e esperava encontrar no programa uma forma de ativismo social. Alguns vieram fascinados pela figura carismática de Kennedy. Outros apenas se alistaram no programa movidos a um espírito de aventura e havia, finalmente, aqueles que buscavam nos Corpos da Paz uma rota de fuga do Vietnã. Eram pessoas, acredito, bem intencionadas e que se tocaram verdadeiramente pela situação social que viram no Brasil. O filme não tem tempo para explorar a fundo a vida posterior dos personagens. Mas muitos deles continuaram vivendo no Brasil, atuando em projetos sociais e comunitários. Outros retornaram mais politizados pela experiência vivida no Brasil e fazem parte hoje de uma esquerda liberal norte-americana que a gente vê aí nos protestos contra Trump, na resistência a essa onda conservadora lá também. No filme, procuro explorar essa presença ambígua dos americanos no Brasil, sem pré-julgar os personagens, mas situando suas ações em um contexto político maior, que vai além das vontades individuais.

O filme encontrou alguma relação entre o Corpos da Paz e a CIA?

Eu não saberia dizer e o filme não responde diretamente a essa pergunta. Até hoje, que eu saiba, não se provou que um voluntário da paz tenha sido agente da CIA. Quando os Corpos da Paz foram criados por Kennedy, houve um esforço muito grande para separar as suas ações de outros órgãos de atuação internacional. Houve também muita pressão pelo contrário, ou seja, pela instrumentalização dos voluntários para outros interesses. O que o filme registra é que, no final da década de 1960, essa orientação mudou no Brasil e os voluntários atuaram sim em programas inventados com claros fins políticos. Mas, nesse caso, é preciso ver o filme e tirar suas próprias conclusões.

O filme fez uma grande pesquisa de imagens de arquivo. Como foi esse trabalho?

Fizemos uma intensa pesquisa em arquivos norte-americanos e brasileiros. Recolhi um material imenso de pessoas e de arquivos. Passei um bom tempo nos Arquivos Nacionais em Washington e na Biblioteca JFK em Boston, assistindo filmes da época e consultando documentos.
Dos materiais mais importantes que trouxemos para o documentário, estão imagens de dois filmes, que se consideravam perdidos e que encontramos em coleções norte-americanas. São eles: os documentários Brazil The Troubled Land, dirigido em 1961 por Helen Rogers para a TV americana, e The Foreigners, realizado por Mark Johnathan Harris em 1968, sobre os Corpos da Paz na América Latina.
O filme de Rogers traz importantes registros como imagens de Francisco Julião e de figuras controversas, como o Padre Melo. Ele foi exibido na TV americana e influenciou a opinião pública e o governo americano da época. É uma clara propaganda anticomunista que procura situar o movimento no campo em Pernambuco como uma ameaça continental. O segundo filme, de Harris, é uma encomenda dos Corpos da Paz na Colômbia. Por muito tempo, esse filme desapareceu do catálogo da agência. O motivo: o que deveria ser uma propaganda institucional do programa se transformou, no filme, em uma dura autocrítica da
presença americana no país.

Encontramos ainda imagens feitas pela agência no Brasil, com a atuação dos voluntários em diversas localidades. São imagens coloridas, filmadas em 16mm e muito bem preservadas. Nada disso existia no Brasil. No caso de The Foreigners, nem o próprio diretor tinha mais o filme e recuperamos com a sua ajuda uma cópia em 16 mm que estava nos Arquivos Nacionais em Washington.

Outro achado que vale destacar são imagens em cores do encontro de João Goulart com John Kennedy nos EUA, realizadas pela Marinha americana em 35mm e que nunca circularam fora dos arquivos. Eu só conhecia um registro em preto e branco feito pela Agência Nacional e, mesmo assim, tive dificuldades em encontrá-lo no Brasil. É emocionante poder dar visibilidade a essas imagens. Elas nos apresentam uma nova textura do passado. Seu valor não é apenas histórico, mas estético.

O filme lida com memória, com a recuperação da história, com a reflexão de um passado que apesar de recente, é pouco conhecido e refletido pelos brasileiros.

Nesse sentido, os EUA possuem uma preocupação com o registro histórico e acesso que não tem paralelo no Brasil. Os arquivos norte-americanos tinham muito mais material acessível sobre o tema do que aqui. Pra mim, isso é também um reflexo de como lidamos com a história, com o fato que preferimos esconder e apagar a memória do que refletir sobre ela. Os voluntários dizem que o programa foi mais importante para eles dos que para os brasileiros, pois tomaram contato com um mundo para além da bolha norte-americana. A gente percebe nessa história que, no Brasil, também vivemos em uma bolha, talvez mais fechada que a dos americanos. Sabemos pouco e nos interessamos pouco sobre a nossa história. Principalmente, menosprezamos a capacidade que governos, agências, empresas ou grupos políticos têm para interferir no curso da nossa história, sobretudo quando a intenção é manter as coisas como estão. Foi assim nos anos 60 e não poderia ser diferente hoje. A ironia é que jamais faria um filme assim se não fossem os arquivos americanos, o cuidado que eles têm com seus documentos e a disposição em oferecer consulta ao público. Qualquer pesquisador ou cineasta no Brasil sabe como é difícil acessar documentos aqui.

A equipe filmando nos EUA

Vocês poderia citar outros trabalhos, filmes ou livros que te ajudaram a realizar o documentário?

O principal livro (e talvez o único) sobre os Corpos da Paz no Brasil foi escrito pela pesquisadora da UFF Cecília Azevedo, que nos emprestou também o título do documentário. O livro de Cecília me ensinou muito sobre o contexto histórico nos EUA e sobre a agência Corpos da Paz. Outra referência muito importante foi o livro de Joseph Page, A Revolução que Nunca Houve. É um clássico escrito nos anos 70 e que revela muito dos bastidores do golpe militar de 1964 em Pernambuco e da atuação da CIA nos projetos agrícolas. Também posso citar o trabalho de uma ex-voluntária dos Corpos da Paz no Chile chamada Jan Knippers Black, que escreveu A Penetração dos EUA no Brasil, impactada pelo golpe militar brasileiro na época. Hoje nós sabemos com mais clareza sobre a participação dos EUA no processo do Golpe de 64 porque a CIA liberou parte da documentação da época. Inclusive, essas questões já foram abordadas no importante filme O dia que durou 21 anos, de Camilo Tavares.

Você poderia contextualizar Em Nome da América no Brasil dos dias de hoje?

“Em Nome da América” é um filme que fala sobre o passado, mas que dialoga com o contexto do Brasil hoje, claro. Quem iria imaginar que o Império Americano se interessaria um dia em comprar uma sede de um sindicato rural em Orobó para se imiscuir na política local em Pernambuco? Se fez isso numa escala tão pequena, o que dizer então quando estamos diante de uma mega empresa internacional como a Petrobrás? Enfim, o filme é um relato de uma experiência que vivi como cineasta e como alguém que resolveu pesquisar um tema histórico, mas eu espero que seja também, no seu corte final, um alerta para o público hoje.

SERVIÇO

O quê: Exibição do documentário “Em Nome da América”, de Fernando Weller, na mostra Arte Doc

Onde e quando: Na quinta-feira (26), às 18h45, no Centro Cultural Arte Pajuçara

Classificação indicativa: livre

Preços por sessão: R$ 16 (inteira) e R$ 8 (meia-entrada).
Passaporte Inteira: R$ 70
Passaporte meia-entrada: R$ 35
Informações e programação completa:
artepajucara.com.br

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