Entrevista com Nilton Resende, diretor e roteirista do curta-metragem ‘‘ A Barca’’

 Perguntas: Vanderlei Tenório. Respostas: Nilton Resende. Texto: Vanderlei Tenório. Revisão: Nilton Resende

Entre os dias 20 e 23 de fevereiro, Nilton Resende conversou com o colunista de cinema Vanderlei Tenório, onde falou um pouco sobre seu filme de estreia A Barca, sobre sua carreira, seus projetos, influências, cinema e o mercado cinematográfico nacional. Nilton Resende é o diretor e roteirista do premiado curta-metragem A Barca, baseado no conto ‘‘Natal na Barca’’, de Lygia Fagundes Telles. A Barca foi um dos projetos contemplados no IV Prêmio de Incentivo à Produção Audiovisual em Alagoas da Secult, em parceria com os Arranjos Regionais do FSA, com produção da La ursa Cinematográfica em co-produção com a VTK. O curta-metragem já conta com participações em inúmeros festivais e mostras de cinema nacionais e internacionais e, ao todo já são 17 prêmios e 4 menções honrosas.

Entrevista realizada via e-mail, e conta com o apoio do 082 Notícias.

Cinema

VANDERLEI TENÓRIO: Como o cinema entrou na sua vida? Quais os primeiros contatos?

NILTON RESENDE: Acho que houve diversos primeiros contatos, por conta dos filmes a que assisti e dos filmes a que não assisti durante a infância.

Dos filmes a que não assisti:

King Kong (1976), que tinha censura 7 ou 8 anos (não me lembro agora), e quando ele estreou no Brasil, no mês de dezembro, eu tinha apenas 6 anos de idade. Fiquei frustrado, porque na televisão passavam as propagandas do filme, eu via o King Kong, eu via a Jessica Lange… Eu fiquei apaixonado por ela. Era até algo erótico quando, na propaganda, ele colocava-a sob a água de uma cachoeira, para ela tomar banho, e depois soprava sobre ela… quando ele tocava nela com carinho… Talvez tenha sido a primeira vez que o cinema tenha tido uma conotação erótica em mim e tenha me apresentado uma paixão, que ali foi a Jessica Lange. King Kong foi meu primeiro contato com a censura, ou ao menos a minha primeira consciência a respeito dela. Mais tarde, a pouca idade também me impediria de ver A Lagoa Azul (1980) e Grease (1982). Pinóquio (1940, mas relançado creio que em 1978). Era no cinema São Luiz, e havia crianças sentadas no chão, o cinema lotado. Eu chorei muito quando o Pinóquio “morreu”.

Isso de o cinema São Luiz estar lotado, com pessoas no chão, era algo comum, e acontecia após termos passado horas na fila, na rua do Comércio. Eram realmente horas de espera do lado de fora, para conseguirmos entrar, e depois esperar mais algum tempo no hall de entrada. Aconteceu isso com muitos filmes d’Os Trapalhões, incluindo um dos melhores, que foi Os Trapalhões nas Minas do Rei Salomão (1977), que me apresentou aquela cena incrível do Didi voando com a bruxa na vassoura voadora, e ela por vezes transformava-se na mocinha, a Monique Lafond, outra atriz por quem me apaixonei.

Outras grandes experiências foram Contatos Imediatos do 3º Grau (1977), que vi com meus pais. Parece que assistimos sentados no mezanino do cinema. Eu me lembro disso porque o teto era baixo, o lugar era mais escuro. Foi uma experiência incrível principalmente em duas cenas: a do garoto escondido na montanha, com a câmera funcionando de modo a parecer que tínhamos o mesmo ponto de vista dele; a das luzes cantantes. Aquela melodia ficou dias se repetindo na minha cabeça.
Carruagens de Fogo (1981), primeira vez em que fui sozinho ao cinema. Foi uma aventura.

E houve também E.T. (1982). Após ver o filme, passei dias triste, deprimido… Eu tinha uma saudade enorme do E.T., eu lamentava porque ele não era meu amigo. Eu passei dias sentindo-me sozinho… Sempre que me lembro desse filme, vem-me a imagem de eu sentado na porta de casa, sozinho, lembrando-me dele, falando com ele em pensamento, querendo que ele aparecesse para mim e fosse meu amigo. Esses são os filmes que marcaram minha infância e foram minhas primeiras grandes experiências no cinema.

VANDERLEI TENÓRIO: Conta pra gente um pouquinho sobre sua trajetória no cinema?

NILTON RESENDE: Ela começou em 2009, como derivação do meu trabalho no teatro, na Cia. Ganymedes. A Lis Paim, que é minha amiga e havia assistido às duas peças do grupo, O Mágico (2007) e As Muitas Últimas Coisas (2009), convidou-me para ser preparador de elenco do filme Um Vestido para Lia (2010)¸ do qual ela era 1ª assistente de direção e produtora de elenco. O filme foi baseado num livro da Regina Célia Barbosa, que também foi roteirista e codiretora, junto com o Hermano Figueiredo. Eu já tinha contato com eles dois, e o convite da Lis foi uma dádiva. Ele me abriu as portas para o cinema. A Lis foi, de certo modo, minha madrinha no cinema, a responsável por eu começar a realizar o sonho de trabalhar com isso, algo que sempre esteve em mim.

Foi uma experiência muito marcante e singular, porque o projeto do filme havia ganhado um edital que permitiu um bom orçamento especificamente para a preparação do elenco. Houve a procura da atriz principal, buscada em Massagueira, onde ia ser filmado, e foi selecionada a Fabrícia Avelino, uma garota que nunca tinha trabalhado com atuação, mas que se mostrou uma grande atriz e uma garota de uma força de vontade e uma disciplina incríveis. Torço muito para que haja mais convites para ela. Durante mais de um mês, eu e a Lis fomos todos os fins de semana à Massagueira, para prepararmos a Fabrícia. E na última semana, eu fiquei “morando” na Massagueira. Tínhamos como ponto de apoio a casa do Lula Nogueira.

Após isso, em 2010 o Anderson Barbosa e o Pablo Casado convidaram-me para fazer a preparação do elenco de Do Amor e Outros Crimes (2011). Foi outra experiência muito gratificante porque participei da seleção de elenco. E nessa seleção, escolhemos a Ticiane Simões, que já era atriz, e que me deu uma alegria enorme durante todo o processo. Que coisa boa foi trabalhar com ela…

No mesmo ano, o Rafhael Barbosa chamou-me para trabalhar em sua primeira ficção, o Km 58 (2011), que tinha como protagonista o Igor de Araújo, que faz parte da Cia. Ganymedes e é um ator incrível. A experiência aí foi diferente porque não trabalhei como preparador, mas como diretor de elenco. Depois, trabalhei ainda como preparador e/ou diretor de elenco em O que Lembro, Tenho (2012, direção de Rafhael Barbosa), Fênix (2012, direção de Anderson Barbosa), Flamor (2013, direção de Leandro Alves), Monique (2015, direção de Wladymir Lima), Avalanche (2017, direção de Leandro Alves). Dez anos após meu primeiro trabalho, roteirizei e dirigi A Barca, que só pôde acontecer por causa da experiência que esses filmes me proporcionaram, por causa das oportunidades que esses diretores me ofereceram, por causa das trocas que seus elencos me deram.

Em A Barca, a Lis foi a montadora; o Rafhael foi o assistente de direção; o Leandro foi o assistente de produção. Muito bom isso, essa relação constante. Quero falar sobre O que Lembro, Tenho, que me deu algo enorme, que foi ter conhecido a dona Anita das Neves e ter podido trabalhar com ela, ter podido aprender com ela. Apenas muito tempo depois comecei a compreender por que aquela mulher era tão forte em cena, comecei a compreender a sua presença, que era movida pelo afeto, e não pelo “entendimento” da cena. A dona Anita me ensinou que, para a atriz/para o ator, a razão, o intelecto, não bastam ou não são o centro. A razão não alcança os lugares que apenas o afeto alcança. E como ator eu sempre sofri porque tentava dar algo às minhas personagens e nunca conseguia. Não conseguia porque eu tentava compreendê-las, eu tentava racionalizá-las. Por toda minha vida, eu coloquei a razão no trono, segurando o cetro de toda autoridade. Foi dona Anita que, anos depois do filme… foi dona Anita que, apenas após sua morte, veio me ensinar que a razão é apenas um dos modos de conhecermos o mundo, de chegarmos a ele, de darmos algo ao mundo. Com ela, aprendi o que faltava para meu trabalho de ator ser menos medíocre. E agora espero poder ter a oportunidade de entrar em cena com esse outro conhecimento.

Ainda relacionado a esse filme, há algo que fiz e de que me arrependo: assumi a preparação de elenco dele e de Fênix, que iria ser filmado logo após as filmagens de O que lembro, Tenho. Mas, já perto do final das gravações, eu estava extenuado. Foi nesse período, inclusive, que começaram a surgir umas neurodermatites em mim. Eu não ia conseguir dar continuidade ao trabalho, eu não ia conseguir estar no set com meus amigos Anderson e Pablo e com a atriz Carol Morais. Então, um dia, da varanda do apartamento do Rafhael, numa pausa das filmagens, telefonei para os meninos e avisei, avisei que estava saindo do projeto. Foi algo muito ruim, isso, porque eles estavam contando comigo. Mas eu não tinha energias para continuar. Se eu tivesse me mantido, talvez tivesse entrado em colapso. O grande erro foi ter aceitado um cronograma em que eu emendava um filme ao outro. Como a preparação/direção de elenco é um trabalho que exige muito de nós, é um trabalho não apenas corporal, eu, mais imaturo do que sou hoje, subestimei bastante as suas exigências.

VANDERLEI TENÓRIO: Quem é sua principal referência no cinema nacional e no cinema internacional?

NILTON RESENDE: Há uns filmes nacionais que amo e que me marcaram muito. Colocarei aqui uns que amo e que me servem como referência estética para o meu próximo trabalho ou que me serviram para A Barca (como é o caso do primeiro filme estrangeiro que irei citar).

Dentre os nacionais: do Walter Salles, Central do Brasil (1998); do Sérgio Machado, Cidade Baixa (2005); do Karim AÏnouz, O Céu de Suely (2006); do André Novais, Temporada (2018).

Dentre os estrangeiros: do Frank Capra, A Felicidade não se Compra (1946); de John Cassavetes, Faces (1968), Uma Mulher sob Influência (1974), Noite de Estréia (1977), Amantes (1984); do Martin Scorsese, Alice não Mora Mais Aqui (1974); de Albert e David Maysles, Grey Gardens (1975); de Mike Leigh, Segredos e Mentiras (1996), Agora ou Nunca (2002); de Rodrigo García, Coisas que Você Pode Dizer só de Olhar para Ela (2000); de Stepnhen Daldry, As Horas (2020); de Hirokazu Koreeda, Depois da Tempestade (2016), Pais e Filhos (2013), Assunto de Família (2013); de Kelly Reichardt, Certas Mulheres (2017); de Chloé Zhao, Nomadland (2010).

Claro que poderia dizer muitos outros, mas estes são aqueles com os quais tenho convivido para o que pretendo criar nos próximos projetos. Aqueles para os quais eu olho, para tentar fazer algo minimamente bom e o mais próximo possível do que eu sonho fazer.

VANDERLEI TENÓRIO: Qual sua visão do cinema nacional e do cinema alagoano atual?

NILTON RESENDE: Ambos estão e são muito bonitos e fortes. O cinema nacional é a soma dos cinemas de cada lugar, de cada estado. Felizmente, nos últimos anos, por causa dos arranjos regionais e outras políticas da Ancine, muitos projetos foram feitos em todo o país. Infelizmente, estamos sofrendo um enorme desmonte em todas as áreas, e isso será sentido mais à frente. Mas, falando do que vem sendo lançado, temos cinema de qualidade em Alagoas, temos cinema de qualidade em todos os estados do Brasil. O cinema alagoano é cinema nacional. Todo cinema é cinema nacional.

VANDERLEI TENÓRIO: Qual é o horizonte para o audiovisual no nosso país?

NILTON RESENDE: Nos próximos anos, teremos certamente uma diminuição na produção, por conta do que o desgoverno federal vem fazendo com a Ancine e suas políticas. Nesta semana, mesmo, veio cobrar a devolução de dinheiro da produção de filmes produzidos há mais de uma década, e cujos planos de finança eram feitos segundos critérios distintos dos de agora. Há uma perseguição ideológica, porque eles sabem a força que a cultura tem, eles sabem a força que o cinema tem. Muitos filmes foram aprovados em editais, e não receberam ainda a grana para serem realizados. Muitos editais estão para serem abertos, mas não o serão se não houver a sinalização da Ancine. Então, enquanto estivermos sob o jugo desse homem nefasto e de sua equipe, teremos desmonte em todos os setores.

VANDERLEI TENÓRIO: É possível pensar em um progresso no cinema nacional e no cinema de Alagoas, apesar das diversas intempéries que a cultura vem sofrendo?

Sim, pois a cultura é algo maior que nós. Nós achamos que a fazemos, mas estamos dentro dela e a serviço dela. Ela se vale de nós, e nos momentos mais difíceis, nos momentos de perseguição, ela dá um modo de se manter e surpreender. Como isso se dará, não sei. Só o tempo dirá.

A Barca

VANDERLEI TENÓRIO: Quais os principais desafios do pré-produção e pós-produção do curta-metragem?

NILTON RESENDE: Foi um filme bastante desafiador, desde a escrita do roteiro, porque era preciso haver cuidado para os diálogos não ficarem muito literários. E há uma grande casca de banana quando vamos adaptar textos de parecem “feitos pro cinema”. Parecem ter uma enganosa facilidade.

Por isso, era preciso haver a atenção para não haver apenas uma transposição do conto para a tela, sem as alterações necessárias. Há símbolos que funcionam no texto, mas que não ficariam bons no filme. Para isso, contribuíram muito três pessoas: o Rafhael, a quem eu mostrei o primeiro tratamento do roteiro e que fez pertinentes comentários a respeito; o Nivaldo Vasconcelos, com quem tive encontros para fazermos uma leitura conjunta e pormenorizada de um dos tratamentos — foi muito importante tê-lo como essa pessoa com quem dialoguei mais aprofundadamente a respeito da escrita. E por fim, a Nina Magalhães, que é o nome que mais aparece nas fichas de inscrição do filme nos festivais: Produtora Executiva, Diretora de Produção, Diretora de Arte. Ela é onipresente — é Nina, a Ubíqua. Ela conseguiu, na construção daquele mundo ficcional, dar à embarcação e aos objetos de cena o poder simbólico que estava no conto e que não podíamos utilizar do mesmo modo. Tudo isso nos desafiou quanto à adaptação.

Tivemos ainda aqueles desafios técnicos, relacionados ao som e à luz.
Quanto ao som, o motor era uma presença constante, e para que ele não se sobressaísse demais, tivemos de sempre navegar a favor da corrente, para que o moto pudesse ser ligado em sua potência mínima, o que diminuiria seu barulho.

Felizmente, tivemos na condução da barca o proprietário dela, o Alanklevs de Oliveira, que é nativo da Massagueira e conhece cada banco de areia, cada canal, cada corrente… Isso foi primordial. Mas, mesmo em sua potência mínima, o som permanecia e não era baixo. Então, utilizamos um “abafa peido”, uma manta, que colocamos na traseira da barca, como uma grande cortina a tentar separar o set e o motor. Tudo isso, aliado ao trabalho de som direto do Léo Bulhões e, posteriormente, à edição e mixagem do Lucas Coelho, deu-nos o que vemos na tela: o som constante do motor da barca, mas ali como algo bem-vindo e necessário; as falas tão audíveis das personagens.

Houve quem perguntasse se o filme havia sido dublado. Mas não foi. Há apenas duas frases que foram dubladas: uma porque ficou um pouco baixa; e outra, porque preferi optar pela frase dita com uma leve mudança no tom da fala.

Quanto à luz, tivemos uma equipe muito boa na fotografia: Michel Rios, na direção de fotografia; Chapola Silva, na assistência de fotografia e operação de câmera; Moab de Oliveira, na iluminação e na elétrica. Quando o filme, no ano passado, ficou como um dos 15 indicados a Melhor Fotografia segundo a ABC – Associação Brasileira de Cinematografia, os três rapazes, nosso talentosos rapazes, falaram a respeito dos desafios e soluções numa matéria do Alagoar. As falas deles podem ser lidas aqui.

Ajudou na fotografia o período em que filmamos. Esse filme tinha de ser feito num período não chuvoso. Além disso, eu queria que fosse durante a Lua Cheia — isso, por conta da luminosidade e por conta mesmo de seu simbolismo, pois ela favorece a expansão, a abundância, a força e o movimento. Filmarmos nesse período seria termos esse astro noturno abençoando-nos durante todo o tempo.

E que bom que foi assim. Do contrário, não teríamos no filme aquela luona linda iluminando a barca e a laguna Manguaba. Algo interessante é que a semana de filmagem era a última semana possível daquele semestre, porque a próxima Lua Cheia seria apenas em março, já no período de chuvas. Felizmente, tudo deu certo. Felizmente, a Lua nos abençoou.

Na pós-produção, estivemos nas mãos do mago Marcos André Caraciolo. ALERTA DE SPOILER Foram necessários quase seis meses para se encontrar o tom ideal da pele do bebê, que foi recriado digitalmente por ele. Vimos muitas imagens de bebês recém mortos, de pessoas mortas… Foram feitos muitos testes… Alguns ficaram assustadores demais, outros ficaram sutis demais. Acredito que felizmente encontramos o tom ideal FIM DO SPOILER. Outro trabalho dele foi retirar de cena o condutor, que apareceu algumas vezes, por trás da personagem da Aline Marta. E também foi necessário mudar de lugar uma das atrizes e retirar de cena eu e o Moab de Olliveira, que estávamos deitados no chão da barca em algumas tomadas. O trabalho do Marquinhos foi incrível, porque imperceptível. Os efeitos especiais do filme ficaram muito bons, porque parecem não existir. Mas, estão lá.

VANDERLEI TENÓRIO: Como ocorreu o processo de pensar e construir o curta?

NILTON RESENDE: Eu sempre sonho em adaptar os textos literários que amo. Tenho uma lista de contos e livros que pretendo um dia transformar em curtas, longas, minisséries, séries… Tenho mesmo uma pretensão de me especializar em adaptações literárias. O conto “Natal na barca” foi o primeiro conto que li na minha vida, aos 16 anos de idade. E por muito tempo quis adaptá-lo. Durante uma época em que eu dava aula no Colégio Santa Madalena Sofia, montei um grupo de cinema com os alunos: assistíamos a filmes, fizemos um curta, começamos a pensar na filmagem de “Natal na barca”.

Chegamos até a visitar locações, fizemos uma travessia de barca até Coqueiro Seco, partindo do Vergel. Mas, era fim de ano, as filmagens iam ficar para o ano seguinte… Não aconteceu. Desse grupo de cinema, fizeram parte a Larissa Lisboa e o Felipe Guimarães, que hoje são duas pessoas muito presentes em nossa cultura e muito importantes, principalmente para o audiovisual. Uns quinze anos depois, o sonho realizou-se, e a adaptação do conto veio a ser o meu primeiro filme. Isso eu devo ao Rafhael Barbosa, que sabiamente tentou me demover da ideia de realizar um longa antes de dirigir um curta — eu sofria demais da arrogância dos ignorantes.

Ele me instigou muito e me fez pensar em algum conto que eu porventura tivesse interesse em adaptar. Daí, me lembrei do “Natal na barca”. Mostrei a ele o conto, ele amou e pensou até em ele mesmo roteirizar e filmar. Aí, quando vi que eu podia perder de realizar um sonho, por causa da arrogância de querer fazer algo para o qual ainda não estava pronto, eu disse ao Rafha e a mim mesmo: eu vou adaptá-lo e dirigi-lo.

VANDERLEI TENÓRIO: Conta pra gente um pouco sobre sua relação pessoal com a obra de Lygia Fagundes Telles.

NILTON RESENDE: O primeiro livro da Lygia que li foi o romance “As Meninas”, quando eu tinha 16 anos. Eu me apaixonei e comecei a ler tudo dela. Posso dizer que grande parte do que sou como pessoa eu devo às obras dela. Em seus romances e contos, eu me reconheci e me conheci. Eu reconheci minha família… Um dos contos, “A Medalha”, salvou minha relação com minha mãe, porque num dado momento eu me recusei a que nossa relação terminasse como termina a relação entre a jovem protagonista e sua mãe. Num dos romances, vi uma frase que uma jovem disse à sua mãe, e que achei de uma estupidez enorme — daí, percebi que eu já havia falado o mesmo ao meu pai

Lygia é uma espécie de amuleto em minha vida — o meu amigo Milton Rosendo (poeta) sempre me diz isso. E é uma verdade: minha vida como professor é abençoada por ela, pois, há mais de vinte anos, toda minha primeira aula é a leitura dramatizada de seu conto “Venha ver o pôr do sol”; literariamente, minha vida é abençoada por ela, pois minha formação como leitor e como escritor passa por suas obras; afetivamente, minha vida é abençoada por ela, pois foi com suas personagens tão cheias de segredos, carência, escamoteação, medo, incompletude, insegurança, inveja, agressividade, mentira… foi com elas que aprendi sobre como somos todos nós, que aprendi que de perto todo mundo é frágil, que aprendi que grande parte do que nos compõe é uma densa sombra; no cinema, minha vida foi abençoada por ela, pois meu primeiro filme, A Barca, é baseado num lindo conto seu que nos fala de como vida e morte navegam juntas sobre o leito do mistério; humanamente, minha vida é abençoada por ela, pois muito do que sou é a soma de todos esses aprendizados.

Costumo dizer para mim mesmo que, após minha família e meus amigos mais íntimos, a Lygia é a pessoa mais importante da minha vida, e eu não seria quem sou sem ela. Isso nos mostra o poder da literatura, o poder da arte. Numa de minhas últimas visitas a ela, eu lhe disse: “Lygia, você é para mim a paisagem mais bonita de São Paulo” — ela sorriu.

VANDERLEI TENÓRIO: Como foram as filmagens e como está sendo para você assimilar a repercussão da obra?

NILTON RESENDE: As filmagens foram tranquilas e num ambiente de grande afeto, afinal, éramos um grupo de amigos dentro de uma pequena barca, perseguindo um sonho. Nós vibramos muito a cada novo festival, a cada prêmio, a cada comentário… Tudo é novidadeiro, porque tudo é inesperado. Sempre que eu revejo o filme, é como se o visse pela primeira vez, e fico vibrando com o trabalho de toda a equipe, que tornou ele possível, que fez ele existir.

Amo ver o elenco em cena. Amo mesmo. E quando falo elenco, falo da Ane, da Wanderlândia, da Aline, do Yan, do Rogério e da Barca.

VANDERLEI TENÓRIO: Quantos e quais prêmios o curta recebeu?

NILTON RESENDE: Foram dezessete prêmios e quatro menções honrosas.

PRÊMIOS:

Melhor Roteiro Adaptado / VI FBCI – Festival Brasil de Cinema Internacional;

Melhor Ficção / FestCurtas Fundaj 2020;

Melhor Fotografia / CineFest Gato Preto;

Melhor Atriz Coadjuvante / Festival de Cinema de Muriaé;

Melhor Filme Nacional / Festival de Cinema de Muriaé;

Melhor Direção / Primeiro Plano — Festival de Cinema de Juiz de Fora e Mercocidades;

Melhor Curta-Metragem pelo Júri Oficial / Rio Fantastik Festival 2020 — Festival Internacional de Cinema Fantástico do Rio de Janeiro;

Melhor Diretor de Curta-Metragem pelo Júri Oficial / Rio Fantastik Festival 2020;

Melhor Curta-Metragem pelo Júri ACCRJ (Associação dos Críticos de Cinema do Rio de Janeiro) / Rio Fantastik Festival 2020;

Melhor Diretor de Curta-Metragem pelo Júri ACCRJ (Associação dos Críticos de Cinema do Rio de Janeiro) / Rio Fantastik Festival 2020;

Melhor Curta Internacional / Holidays 365 International Film Festival/Orange, Califórnia, EUA;

Melhor Fotografia / Holidays 365 International Film Festival/Orange, Califórnia, EUA;

Melhor Atriz / Holidays 365 International Film Festival/Orange, Califórnia, EUA;

Melhor Pôster pelo Júri Popular / Festival Curta Brasília;

Melhor Direção / 13º Curta Canoa – Festival Latino Americano de Cinema de Canoa Quebrada (Ceará);

Melhor Curta de Ficção – Seridó Cine

Melhor Curta-metragem Mostra Competitiva Nordeste — III Mostra de Cinema Contemporâneo do Nordeste

MENÇÕES HONROSAS:

Menção Honrosa – Curta de Ficção / PLATEAU – Festival Internacional de Cinema da Praia, Cabo Verde;

Menção Honrosa – Mostra de Cinema Universitário / Circuito Penedo de Cinema;

Menção Honrosa – Mostra Internacional / VI Cinemaway – Kinomashrut/Zhovkva, Ucrânia;

Menção Honrosa – Night Award / International Festival Signes de Nuit/Lisboa, Portugal;

VANDERLEI TENÓRIO: Qual a maior dificuldade em escrever um curta-metragem?

NILTON RESENDE: Acho que um curta está para o conto assim como um longa está para o romance. Ambos têm suas próprias exigências. De imediato, poderíamos pensar que no curta/conto, algo necessário é a exatidão, a economia. Mas, cada projeto é um projeto. Então, cada curta terá suas exigências específicas. Cada projeto artístico tem suas especificidades estéticas, e o que estará impresso nele deverá ter a ver com isso, e não com regras que lhe sejam exteriores. O que importa é a sua regra interna, sua alma. Isso é o que deverá lhe reger. Não sei e não quero dizer algo que pareça normativo.

VANDERLEI TENÓRIO: Qual sua/seu roteirista favorita/o? Por quê?

NILTON RESENDE: Não sei dizer. Sinceramente. E não quero dar uma de “entendedor de roteiros”. Qualquer um dos filmes que citei acima poderia ser considerado um filme com roteiro de que gosto. E acrescentaria um filme, o Fim de Caso (1999), dirigido por Neil Jordan e roteirizado também por dele, a partir do romance homônimo escrito pelo Graham Greene. Há também O Assalto (2001), escrito e dirigido pelo David Mamet… Acho ele muito foda. Há Os Últimos Passos de um Homem (1995), escrito e dirigido pelo Tim Robbins, adaptado do livro homônimo da irmã Helen Prejean. E Stalker (1979), do Andrei Tarkovski — esse foi um dos primeiros filmes a me chamar a atenção para além das personagens. Porque, na verdade, ao assistir a um filme, sempre procurei as personagens. Nunca me vi pensando sobre o roteiro. Muito embora, claro, seja ele que me dá as personagens. Mas acho que dá para entender o que eu quero dizer: nunca pensei na estrutura por trás. Apenas agora, que estou escrevendo roteiros, é que começo a pensar neles, a pensar como, através deles, dar ao mundo as personagens que pretendo dar.

VANDERLEI TENÓRIO: Quais são os seus próximos projetos?

NILTON RESENDE: Um curta de ficção a ser filmado aqui em União dos Palmares, com uns jovens daqui. E um longa de ficção chamado Edifício Lygia, cujo roteiro está em seu 19º tratamento, e que também é baseado na obra de Lygia Fagundes Telles. Os textos-base são três contos: “Antes do Baile Verde”, “A Medalha”, “Emanuel”. Mas, as personagens são fusões de personagens de vários livros, inclusive de romances, como “As Meninas” e “Ciranda de Pedra”.

Ele se passa num edifício suburbano, um edifício de três andares em que vivem as protagonistas. Ele se passa num dia, da quinta para a sexta-feira de carnaval. Adriana, Alice e Tatisa, que moram aí, estão insatisfeitas com suas condições e farão o que estiver a seu alcance para se libertarem do que as oprime, mesmo que tenham de ir até as últimas consequências, mesmo que tenham de fazer o que seria julgado imoral, como valer-se do egoísmo, da crueldade, da mentira. Elas querem sobreviver. E nessa situação, o instinto fala mais forte.

VANDERLEI TENÓRIO: Suas últimas palavras (fique à vontade).

NILTON RESENDE: Para todos, principalmente os que sabem de sua fragilidade e os que querem fazer arte, eu diria o que diria a mim mesmo se me visse criança, adolescente, jovem: não tenha medo. E para a vida, eu diria o que venho dizendo há alguns meses: muito obrigado. E apenas há alguns meses, mesmo, pois eu ainda não havia alcançado a maturidade suficiente para compreender o que é ter gratidão. Mas não sei explicar o que é. Apenas, vivo isso. Tento viver isso.

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