Texto: Leonardo Amorim, Francis Vogner dos Reis e Lila Foster.
Leonardo Amorim entrevista Francis Vogner dos Reis e Lila Foster. Conversam sobre a curadoria da Mostra Aurora da 24ª Mostra de Cinema de Tiradentes, após um ano de isolamento e “estagnação” do cinema brasileiro. A entrevista foi realizada no dia 28/01/2021 em um chat de vídeo pelo google meet.
Leonardo Amorim: Já aviso que estão sendo gravados. Eu queria conversar com vocês sobre como enxergam as mudanças da última década no cinema brasileiro e como Tiradentes tem pautado isso, como vem se configurando esse novo cinema, e ainda nesse contexto de pandemia.
Lila Foster: Ah você começou com essa pergunta fácil. Massa, legal!
LA: Quem quiser ir primeiro pode ir tranquilo!
Francis Vogner dos Reis: Olha, eu acho que aí tem dois aspectos. Nos curtas, que sempre respondem mais imediatamente às circunstâncias, eu acho que de fato a pandemia, o isolamento, teve um impacto mais visível, mais grave. Foi uma das questões que nortearam alguns filmes. Mas a questão do isolamento, e quando eu falo isolamento, eu to falando do ambiente doméstico, desde a janela do apartamento. Isso não é novidade porque desde que a tecnologia se tornou viável, e as pessoas começaram a fazer filmes, operar uma câmera como se caneta, fazer filmes por conta própria, acho que isso já existe há muito tempo. Filme feito no isolamento, ou dentro do ambiente doméstico, ou feito por uma pessoa só, isso já é uma tendência, também, que vem de muito tempo. A pandemia deu um salto nessa prática do ponto de vista do assunto, não da forma. Já nos longas é difícil dizer, porque os longas respondem as coisas em um outro tempo, muitos desses filmes estão sendo realizados há anos. O que eu sinto é que na nossa experiência como espectador a gente vê esses filmes, esses longas-metragens, de um outro modo. E a gente não consegue separar a pandemia, o isolamento, as milhares de mortes pelo Covid-19, de uma falta de horizonte de curto ou médio prazo e da situação que se estabeleceu no Brasil, desse processo político-social-econômico dos últimos anos. A gente não consegue ver as coisas separadas, eu pelo menos não consigo. Então para mim, quando eu vejo um filme como o Eu, Empresa, é claro que eu to vendo um processo que se desenrola no Brasil nos últimos anos no trabalho audiovisual. Mas eu não consigo deixar de pensar isso em um outro grau, desde a experiência da pandemia. Do ponto de vista da produção, na hora que acabar essa pandemia, eu não acho que alguns modelos de produção independente vão mudar. Mas as circunstâncias políticas que envolvem a pandemia vão reorientar o olhar e a perspectiva, sensível e econômica, de quem faz filmes.
LF: Acho que pensando nesse arco que você propôs, de uma década, quer dizer, a gente começando uma nova década então compararia 2011 e 2021. Um dos marcos da gente pensar essa temática deste ano, “Vertentes da Criação”, que a gente começou falando sobre processos, processos criativos, muito a partir de uma reflexão dos filmes em Tiradentes, dos filmes e dos debates. A gente percebeu a diferença e a gente até ressalta essa diferença no texto de curadoria. Esse cinema dos anos 2010, começo da Aurora, quando se despontam uma série de coletivos e de produções regionais, esses ciclos no Ceará, Minas Gerais, coletivos como Teia e Alumbramento, poderia citar vários outros. E eu acho que a Aurora e a Mostra Tiradentes sedimentou um lugar para essa produção que de alguma forma não estava dentro do circuito de financiamento usual. Uma circulação de filme que o Cleber fala muito disso, eu percebia filmes que não via a existência deles em outros lugares. Então 10 anos depois, pensando nesse arco temporal, a gente teve uma modificação da inserção desses grupos dentro de um regime de financiamento. Há 2 ou 3 anos atrás a gente fez um levantamento da Aurora, e esse ano também inclusive, tem muitos filmes que têm dinheiro dos arranjos regionais e da Ancine. Quer dizer, não é mais um cinema que é feito fora desse regime de financiamento, principalmente os longas. Então o que é que marca, quer dizer, claro que esses coletivos também mudaram os processos de criação, criaram outras formas de produção, o que é que nesse período a gente entende como uma espécie de diferença. E aí pensando também como a gente atualiza a importância da Aurora, eu acho impossível a gente não pensar o que é uma transformação dentro de uma curadoria, era o Cleber que assumia a curadoria junto com a assistência do Francis em alguns momentos, mas no geral era uma pessoa ou duas pessoas. Agora a gente tem um corpo curatorial nos longas que é maior, e nos curtas também, tem mais mulheres na curadoria. Acho que Tiradentes foi muito mobilizado por uma transformação que acontece em um outro circuito de festivais, uma pressão para entender esses processos de visibilidade e visibilização. Acho que existe todo um contexto dentro dos festivais brasileiros que apontam para uma necessidade de você permitir que você tenha diferentes perspectivas. E acho que uma compreensão para mim é que a curadoria não é a escolha do filme certo, não é filme certo, é um arranjo que se faz a partir de uma negociação de olhares, ainda mais dentro de uma equipe de curadoria. Então pensando na curadoria acho que tem essa mudança dentro do corpo curatorial, que reflete nas produções que estão presentes no festival, tem uma ampliação da produção, novos agentes entrando dentro dessa produção. A gente também tem que comparar um processo tecnológico de 10 anos atrás, já que hoje em dia de fato se faz filme com celular, as coisa vão se tornando mais acessíveis. Mas dentro dessa perspectiva de que Tiradentes esteve sujeito a essas mudanças todas, e a gente sente muito nessa produção, a Carol Rodrigues até citou a “primavera negra”. Quer dizer essa produção de curtas e longas com proposições estéticas muito inovadoras, invertendo lugares, o lugar do código cinematográfico. Com artistas trabalhando de forma muito ativa, fotógrafos e fotógrafas, montadores, acho que fica muito claro esse trabalho que se dá não em uma centralização em diretora, diretora, autor, é uma coletividade que se expressa, e a gente sente muito nos debates de Tiradentes, a partir de um processo criativo ampliado. Essas coisas não se dão sem a montagem, sem a fotografia, direção de arte. Acho que tem uma potência muito grande nisso. Então para além de Tiradentes ter mais uma presença, Tiradentes começou a registrar a autodeclarçaão de raça, tem todo um levantamento diferente, a gente sabe um pouco mais de quem são os diretores e diretoras quando os filmes chegam, para além de uma presença maior de diretores e diretoras negras. Nos últimos dois anos a gente teve dois filmes da Sueli e Isael Maxakali presentes nas Olhos Livres, o cinema indígena vem se inscrevendo mais, tem uma presença maior. Vejo muito essa transformação no quadro, quem são as pessoas que estão fazendo. A gente teve debates muito tensionados nesse lugar, onde estão as mulheres críticas, as mulheres negras críticas, acho que a gente respondeu isso de alguma forma, não acho que a gente levou a frente o processo, mas respondeu de alguma forma. E quando eu penso na presença desses filmes tanto na Olhos livres quanto na Aurora, vou falar mais dos longas, acho que Tiradentes tem um espaço muito especial. Por exemplo, esse ano a gente tem filmes como Rosa Tirana do Rogério Sagui que é um filme que eu acho que tem muito essa tensão. A gente entende que Tiradentes é um espaço para um filme produzido no interior da Bahia com uma estrutura fabular e narrativa. A gente tem uma produção muito variada no cinema brasileiro contemporâneo, temos um espaço de circulação dos filmes cada vez mais restrito, por exemplo esse ano é inevitável pensar na mudança do perfil do Festival de Brasília, acho que destaca a importância que Tiradentes tem para exibição de certos filmes, neste espaço que tá cada vez mais arrochado. Então a gente acha que Tiradentes mantém essa importância de olhar para esse campo do cinema brasileiro, e claro que a Aurora tem uma cara, todo mundo tem um campo de percepção e expectativas com filmes da Aurora, mas Tiradentes também tem essa compreensão de olhar para o campo cinematográfico de uma forma mais alargada. Então a gente tem produções com investimentos dramatúrgicos muito fortes, nos últimos anos isso tem sido uma constante na Aurora, como o filme Dias Vazios, um goiano que passou 3 anos atrás, esse ano temos O Cerco e A Mesma Parte de Um Homem. Então eu vejo essa mudança, mas ainda vejo essa importância de Tiradentes nesta mobilização do campo e talvez de encontrar esses filmes que talvez só tenham espaço em Tiradentes. Tiradentes ainda tem esse gesto de olhar e dar a ver esses movimentos que às vezes não são a mesma coisa, por exemplo Oráculo que é experimental, seis planos-sequência, o fabular no Rosa Tirana, um filme de atriz-ator em um espaço cerrado como A Mesma Parte de um Homem. Então acho que Tiradentes ainda guarda esse olhar ampliado pro campo, que continua sendo a importância do festival.
FVR: Um comentário a partir do que a Lila disse, acho que é importante essa definição que ela deu da Mostra Tiradentes, de usar como exemplo essas diferenças. O Rosa Tirana por exemplo, eu acho um filme extremamente importante, feito em Poções na Bahia, e é um filme que tem uma forma, tem uma abordagem, completamente fora do radar de um certo cinema contemporâneo. É natural que o cinema brasileiro em alguma medida dialogue com algumas tendências internacionais do cinema contemporâneo. E eu acho que Tiradentes tem uma particularidade que por mais que ele seja um festival do cinema brasileiro contemporâneo, não é o mesmo cinema brasileiro contemporâneo celebrado por festivais a nível internacional. A gente tem um continente de filmes e eles são muito diferentes entre si. Eu sempre tive resistência a essa conversa de Tiradentização do cinema brasileiro, que tem claramente um viés pejorativo, de que esse ou aquele filme é “a cara de Tiradentes”, eu acho que a cara de Tiradentes são vários filmes. Existe esse debate, e eu sinto que quem fala isso conhece pouco os filmes que por lá passaram. Se existe uma Tiradentização eu gostaria de entendê-la nesse gesto de programar em um mesmo ano Oráculo, Rosa Tirana, e A Mesma Parte de Um Homem, e ver que fazem sentido juntos.
LA: Não fugindo desse assunto, mas vou trazer um trecho de uma entrevista que Lila deu para Mídia Ninja há uns 4 anos, para ir adicionando nessa conversa. Nela você fala sobre uma estética amadora, e você a define: “Pensando essa questão de estética, acho que a gente vive um tempo da estética amadora — vou falar amador mas sem falar isso de forma depreciativa — com aquele que está muito implicado naquilo que ele está filmando. E daí é a reação, é a câmera que treme, é o deslocamento, é uma montagem que se dá no fluxo, no espaço, não é uma montagem posterior por exemplo, mas aí eu fico pensando, eu gostaria de ver o reprocessamento disso.” E aí pensando nessas coisas que tinham visceralidade, essa câmera inquieta, pensar nos filmes que foram exibidos até aqui como eles tem uma calma, um controle, exceto por Rosa Tirana. Queria que você comentasse sobre essa fala relacionando com o que a gente tem conversado.
LF: Naquele ano especificamente, em que dei essa entrevista, eu tava nos curtas. Tinha acabado de entrar em Tiradentes e, que nem essa ano teve boom de filme de pandemia, naquele ano teve o boom do cinema brasileiro contemporâneo de revirar baús, revirar arquivos. Então desde Super 8, filme de família, e naquele ano especificamente muita gente usando acervo de fita de VHS. E tem Diário de Sintra da Paula Gaitán que está passando também, tem esses acesso a memória através dessas imagens; Danilo Carvalho, tem uma infinidade de filmes do cinema contemporâneo que tão lidando com esse lugar da memória através dessas imagens fugidias e desse regime do amador. Tenho uma pesquisa ampla sobre isso, não necessariamente em relação ao cinema contemporâneo. A gente brincava que era o boom do VHS nessa 20ª edição de Tiradentes. Porque eram muitos filmes ou usando arquivos, ou emulando a câmera tremida do VHS, uma coisa muito marcante daquele momento. Mas por exemplo, se eu faço um arco temporal, isso foi em 2017 e a gente tá em 2021. A gente tem nesses últimos anos a incorporação dessa esfera ampliada do que a gente pode chamar de amador ou não amador, que são os memes, os gifs, filmes que vão incorporar essa estética, esse jogo, essa linguagem do meme. Tem muitos filmes incorporando esse regime da imagem, que não é o cinema, mas é a imagem. Nossa subjetividade está conformada por essas imagens, essas imagens em movimento são imagens próximas da nossa vida. Se a gente pensar elas são narrativas de si, e essas narrativas se dão com os instrumentos que estão mais próximos, tipo os celulares. Uma época sendo o Super 8 e agora os celulares, com uma diferença bem grande. Acho que tem essa marca desse contemporâneo e se a gente for pensar numa diferença com 10 anos atrás, é um outro regime de visibilidade e de imagens. Nessa década que passou a gente viveu a explosão disso. E o cinema tá dentro disso e sujeito a isso. Tem um curta que se chama Drama Queen e passa esse ano, que é um filme pandêmico, mas opera dentro desse regime dessas imagens múltiplas. E o Eu, Empresa é um filme interessante porque ele vai incorporar essa estética, mas fazendo o lugar do capital dentro da nossa precarização. Porque no fundo é isso, né, a gente trabalhando o tempo todo para essas empresas, alimentando Instagram e rede social, mas aí eu tô falando de outra coisa.
LA: Pensando também como a década trouxe as determinadas demandas sociais, eu sinto que em filmes recentes as demandas existem, mas cada vez mais elas se fazem de forma menos direta. Depois de uma década que viu um boom nesses filmes, nesses posicionamentos frontais, agora passa a lidar com as questões de forma, não sei se mais abstrata, mas com certeza menos pedagógica.
LF: Acho que a gente tá em outro momento. Um momento de explosão de fabulação, de linguagem, de como vai remeter a essas questões que é muito outra. É um processo tão rico, e aí eu fico pensando em um filme que já foi muito citado, como República da Grace Passô. Essas questões estão colocadas em um outro lugar, profunda experimentação, assumem uma outra proposição estética. Dentro do corpo de filmes da Aurora agora temos por exemplo Açucena, em que a questão está ali, mas é um documentário que vai criar uma forma para uma presença de outra ordem. Essas questões estão sendo colocadas pelos filmes, pela forma dos filmes. Essas demandas tem uma dimensão discursiva. Lembro do primeiro ano em Tiradentes houve uma questão de “Onde estão as mulheres negras críticas?” e é algo pra gente encarar de frente. Acho que os filmes estão operando… qual o filme que ganhou?
LA: Canto dos Ossos?
LF: Não era nesse que estava pensando, mas Canto dos Ossos também. Quando a gente vai pensar na questão trans entre tantas coisas, ele não é da ordem de proferir um grande discurso sobre a questão, mas os corpos tão ali, vampirescos, monstruosos, lindos. É uma coisa muito densa e profunda. Então acho que os filmes estão nesse lugar porque as pessoas estão fazendo.
FVR: Eu vejo uma coisa interessante nisso que a Lila tá falando, porque por um lado de fato as coisas mudaram. Para mim o grande fenômeno dos últimos anos é sobretudo a visibilidade que tem se dado e a multiplicidade de propostas, fomentadas por essa visibilidade de filmes que acabam promovendo uma influência em quem realiza. Porque, por exemplo, questões como raça e gênero e a elaboração que os filmes fazem desses assuntos, eu vejo que hoje, como também no passado, você tem claramente dois segmentos. Em um segmento, os filmes que estão mais preocupados em trabalhar o tema de uma maneira que ele possa ser comunicado, como ideário e discurso, visualmente para quem tá assistindo, ainda que nesse modo possa haver sutilezas variadas. No outro segmento há filmes que estão elaborando as coisas de um outro modo, encontrando outros vetores dessas discussões, República, de Grace Passô, é o exemplo de uma construção extremamente sofisticada. Uma questão da arte: encontrar um outro modo de dizer as coisas, de mostrar as coisas, de pensar as coisas, de tensionar as tramas de uma experiência histórica, de criar uma imagem sobre isso. Um filme por exemplo como Incrível Mundo Remix do Gabriel Martins, essas coisas não estão colocadas lá como “vamos tratar do preconceito racial, ou constrangimento histórico”, mas ao mesmo tempo há uma família que é um emblema político dos anos Lula e Dilma, que é uma família negra de classe média da periferia. O sobrado grande, viagem ao exterior, câmera. Você tem também André Novais fazendo os experimentos dele em torno desses espaços e personagens em Contagem. O que eu quero dizer é que esses realizadores negros e negras estão aí há algum tempo, elaborando coisas extremamente sofisticadas antes da emergência desse movimento. Isso é importante. os filmes sempre vem antes. Curadoria não inventa nada, sua função é organizar, talvez influenciar, arregimentar, inclusive a crítica tem potencial pra elaborar ideias melhor do que nós, curadores. Então eu acho que essas duas coisas, o cinema mais direto, de um didatismo mais da agenda, e outro que tem essas elaborações que se relacionam com essas questões, por outros caminhos e vetores, acho que ambos sempre existiram. O que muda é a movimentação social desse campo e o discurso desse campo em torno de suas próprias produções, e a necessidade dessas produções ocuparem os espaços no cinema brasileiro e na cena do audiovisual.
LA: Continuando nessa questão das elaborações, acho muito interessante como os filmes vem bebendo cada vez mais de um cinema de gênero. Essa fabulação que Rosa Tirana tem por exemplo. Ano passado houveram filmes, não só Canto dos Ossos, mas também Cabeça de Nêgo, que é um role Carpenter, um Assalto ao 13º DP na escola. E que dá para ver em A Mesma Parte de um Homem também, que tem uma construção de terror, mística, no homem misterioso que chega. Sinto que os filmes tão pegando diretamente dessa coisa, talvez não só para falar ou lidar com os temas que lhe interessam, mas para tentar experimentações estéticas na medida do possível. Queria saber como vocês encaram isso nos últimos anos.
LF: Teve uma roda de conversa, “O que é uma personagem?”, em que o Gabito também estava. E lembrando muito das conversas sobre Cabeça de Nêgo, eu acho que é muito um campo de referências. Como você tem um processo formativo do cinema, uma cinefilia de assistir filme na televisão. E esse campo de referência, pensando muito no que Gabito falou e também no que Déo falou de certa forma, mas o Gabito fala de como consumiu esses filmes sem perceber, de um processo de identificação, ou de entender como se relacionava com o mundo dele. Mas aí como pode fazer o mundo dele, as pessoas ao redor dele, como perceber esse cinema que opera em uma linguagem de comunicação, e aí também tem isso. Pensando em No Coração do Mundo e Cabeça de Nêgo, acho que a gente falhou muito na batalha, no nosso sistema econômico, porque esses eram filmes para estarem lotando sala de cinema. E não lota porque não tem um sistema de distribuição que dê conta disso. Eram filmes para tá passando na televisão à tarde, à noite. Não tem nenhum motivo para esses filmes não estarem nesses espaços. Acho que a questão é: por que esses filmes não estão nesses espaços? Acho que a presença disso que você tá falando, um cinema que vai lidar com gênero, eu também sinto muito uma coisa geracional. Tem um filme do Rodrigo Grota, que é uma homenagem a essas referências, que tem a ver com o universo geracional, o Passagem Secreta. É um filme que vai tá dialogando com Goonies, com esses filmes de terror, com essa nostalgia meio sessão da tarde. E aí talvez seja um marcador de quem viveu os anos 80 e 90 assistindo filmes. Então tem essas referências, que são também referências de um cinema que comunica, talvez no campo do entretenimento, que isso também interessa, também interessa mobilizar o espectador nesse lugar. Acho que tem muito a ver com isso.
FVR: A questão do gênero traz a reboque dois recortes. Acho que historicamente o gênero do horror e da ficção científica tem muita força e intensidade em momentos de crise, momentos de emanação de fantasmagorias sociais e históricas. Final do século 19, por exemplo, Drácula é, esse conde, esse monstro da aristocracia do passado, que emerge durante a revolução industrial inglesa. Você tem também Frankenstein de Mary Shelly. A figura do monstro ali nesse momento, no caso do Frankenstein, é a ciência do homem virando Deus e sua criação matando ele próprio, o que vai nortear a ficção científica e o horror no século vindouro. Nos anos 50 tem a Guerra Fria. Então você tem o horror criando imagens sobre as fantasmagorias do seu tempo. Fantasmagoria no sentido de serem espectros de pontos cegos de uma época que não estão absolutamente consolidados de maneira muito clara, seja no discurso político, no científico, e etc… E eu acho que nos últimos anos do cinema brasileiro tem o horror, mas também tem o filme de aventura, ou de ação, que vai dar saltos imaginativos ao tratar de uma situação de maneira diferente a partir de arquétipos, no caso de Bacurau por exemplo. E ao mesmo tempo, eu penso que o cinema brasileiro moderno sempre bebeu dos gêneros. Glauber Rocha com Deus e o Diabo na Terra do Sol, uma estrutura arquetípica do Western, tem Assalto ao trem pagador, O Bandido da Luz Vermelha é um filme noir. O cinema brasileiro sempre metabolizou esses gêneros da indústria na sua modernidade mais radical. Então não é novidade, mas tem uma versão muito particular do nosso momento histórico que é o seguinte, é como disse a Lila, é uma geração que tem um repertório que cresceu assistindo determinados tipos de filmes. E eu acredito que muita gente, indo de Kleber Mendonça até Marco Dutra e Julianas Rojas, Gabriel Martins, de olhar para um filme como Cronenberg e John Carpenter, e dizer: olha, isso é um filme de horror, mas é uma crônica sobre o mundo contemporâneo. Trazem à tona pelo grotesco os fantasmas da história. Acho que o Carpenter é claramente isso e o Cronenberg lida com isso de outra maneira. Então esses autores, que talvez em uma outra época fossem colocados em um segundo time, hoje para uma geração que os teve em seu repertório, esses filmes e cineastas deram a entender que fazer contos, alegorias e parábolas sobre o seu país e seu tempo com os instrumentos do cinema de gênero pode levar o cinema a outros e inauditos lugares. Aí chega essa outra galera, com essa outra formação, mas que está plenamente dentro da modernidade do cinema brasileiro, de uma relação que o cinema brasileiro sempre teve com os gêneros, com outras tradições, e também tem a ver com esses momentos de crise de um país, de um tempo que vai olhar para o seu passado e seu presente e entender quais são os seus fantasmas. Acho que isso tá em Boas Maneiras, Bacurau, Nó do Diabo, e nos curtas que são muitos.
LA: Lila tem algo a acrescentar?
LF: Acho que tem uma coisa interessante também que a gente tava falando, todas essas questões eu acho que tangenciam um ciclo das políticas públicas né?
FVR: É, verdade.
LF: Porque também esse cinema de gênero tem a ver, e eu não acho que o cinema de gênero está circunscrito a orçamentos maiores, mas ele está circunscrito a uma determinada estrutura, que não é só narrativa, mas de como esses filmes foram feitos. O Bandido da Luz Vermelha também responde a uma estrutura, a de circulação na boca do lixo, filmes que tinham seu retorno financeiro, então acho que esse ciclo também tem a ver com o ciclo de financiamento. Que permitiu que esses diretores tivessem acesso a esses financiamentos da Ancine, assim como o ciclo que a gente percebe que tem a ver com as políticas públicas, não só dentro do campo do cinema, mas o acesso dos jovens a universidade, isso sim foi revolucionário. Quem são as pessoas que estão fazendo cinema hoje em dia. Eu entrei na UNB em 1998, dou aula na UNB agora, e é um curso de cinema completamente diferente. Porque não é mais uma classe média branca, uma elite branca, que tem acesso a esses cursos. É interessante pensar como essas políticas públicas vão criando campos materiais de possibilidade também. E não estou fazendo uma coisa de causa e efeito, tá, mas a gente tem um ciclo de surgimento de roteiristas. As pessoas tiveram tempo, mandaram primeiro um projeto de edital de escrita de longa-metragem, depois foram produzir, e tem os núcleos criativos, que o Francis pode falar mais disso. É um tempo de escrita, um tempo de formulação. Uma figura que fala muito dos gêneros é o Adirley, que não está ali direto, mas como é que é esse tempo de criação, né? Agora tem também todo um engessamento das formas de financiamento, de certa maneira. Possibilitou também esse cinemão, que eu acho um cinemão. Acho No Coração do Mundo um cinemão, Cabeça de Nego é um cinemão.
LA: Francis, pode falar sobre os núcleos criativos que a Lila comentou?
FVR: Sim. Os Núcleos Criativos tinham problemas, mas tinham uma proposta interessante. Acho que cada produtora apresentava uma cartela de projetos que ganhava edital, e aí esses projetos eram desenvolvidos em um período. Era o desenvolvimento de roteiro e desenvolvimento de projetos para concorrer a outros editais e etc… E nos que eu participei, e também outros que conheci e participei de maneira indireta como consultor, é justamente um período de imersão e debate entre pessoas, entre grupos. Muitas vezes pessoas diferentes compartilhavam, liam o projeto do outro, e os consultores tinham esse papel de orientar. Acho algo muito interessante porque justamente a partir daí a gente tinha laboratórios de roteiro e de projeto que eram muito sólidos, no sentido que nas minhas experiências estava muito mais ligados a demandas de imaginário, do que outros laboratórios em que você tá ligado de maneira muito mais restrita às demandas do mercado, ainda que mercado de filmes de autor. Só que aí tem uma questão complexa, porque o ideal seria que esses projetos desenvolvidos nos núcleos tivessem algo que proporcionasse o desdobramento disso para realização, o que não era garantido. Então muitas vezes os núcleos iam lá, desenvolviam coisas incríveis, sem nenhuma garantia de que aquilo teria seus desdobramentos depois, eu acho que foi um problema. Entretanto, eu acho que as experiências dos núcleos são muito interessantes. Acho que sofrendo adaptações, em uma perspectiva crítica do que eles foram, no seu melhor, mas também no que eram mais frágeis, eu acho que pode orientar futuras políticas públicas. O que eu acho que as políticas públicas dos últimos governos antes do golpe fizeram foi criar um circuito profissional e criativo para além do eixo do sudeste e fomentar essas práticas que me pareciam muito promissoras. Mas a grande questão para mim era a falta de garantia de muitos desses projetos, a médio ou a longo prazo. Cada núcleo era um milhão investido. Então, se era dinheiro público, era necessário ter alguma garantia que isso pudesse seguir e ser realizado, porque é dinheiro público investido, e essa garantia não existia. São coisas que poderiam ser ajustadas com o tempo, se isso não pudesse ser interrompido. A Lila chama muita atenção para essa questão das políticas públicas da mudança das universidades, da presença de outras pessoas que até então não estavam na universidade. Isso traz outros imaginários e desejos, traz outra relação com a realidade. E ao mesmo tempo, a descentralização, porque eu lembro de uma vez no início do governo Lula, que o Caetano falou “ah, mas não precisa descentralizar, porque nos Estados Unidos tá tudo centralizado em Hollywood”, o que é uma bobagem. E isso mostra que a descentralização de fato mudou o mapa do cinema brasileiro de maneira profunda. Acho que principalmente no sudeste, onde eu moro, isso não é visto com a radicalidade necessária. Só São Paulo e Rio fazendo filme é um ciclo histórico que se esgotou. Eu acho extremamente importante a gente bater nessa tecla. Toda mudança do cinema brasileiro, tecnológica, de novos protagonistas, de descentralização, tudo isso foi possível porque houve governos absolutamente comprometidos com uma mudança na cartografia do cinema brasileiro. Aí a gente tem outros problemas. A questão por exemplo da distribuição, do mercado para esses filmes, acho que foi o calcanhar de Aquiles, mas não apaga a mudança substancial que aconteceu.
LA: Vou fazer uma última pergunta pra gente encerrar e ir tranquilos pro debate do A Mesma Parte de Um Homem. Pensando nessa descentralização do eixo sudeste, queria que vocês falassem como enxergam o papel de Tiradentes nesse processo. Não somente de dar visibilidade, mas especialmente neste ano em que o Brasil como um todo tem acesso ao que é a produção do cinema brasileiro contemporâneo através de um festival como Tiradentes.
LF: Eu acho curiosas essas perguntas, porque a gente lança isso pro mundo, quem tem que dizer é o mundo! Às vezes perguntam: como vocês percebem esse negócio tal, e aí a gente tem que se virar nos 30 para responder isso. Porque a gente passa meses vendo os filmes, tentando reagir aos filmes, esse ano foi um ano diferente porque a gente sente muita falta desse outro momento. Tem esse primeiro momento que é esse visionamento, que a gente vê muita coisa, tenta sentir os filmes, pensar, a gente sente, organiza, propõe, em Tiradentes a gente encontra e recebe essas coisas. Mas não é que eu não quero te responder, é que essa figura do poder do curador como esse grande visionário que vai responder pelos últimos 10 anos de Tiradentes, e os próximos 10 anos de Tiradentes, e o que a gente queria esse ano. Só tô te respondendo assim porque acho que a entrevista foi muito boa e me sinto muito à vontade de falar isso. Eu não sei, a gente também ainda está imerso no processo, claro que em um lugar de poder de ter visto o que entrou e não entrou, mas ao mesmo tempo, eu não sei dizer. Eu acho que Tiradentes tem a força disso que Francis falou, desse encontro, quem esteve em Tiradentes sabe o que é a intensidade dos debates, as respostas. Eu tenho sentido que Tiradentes não é só Aurora e nossa proposição de debates tem sido muito interessante. Mas eu não sei te dizer. Acho que é um pouco aquilo que falei no começo, como intenção a gente tem esse olhar para o campo do cinema brasileiro, um campo alargado, diferente de outros festivais que tem algumas circunscrições, a curadoria passa muito por esse lugar. Tiradentes tem uma programação ampla, também, que permite mobilizar. A gente tem a praça, a Olhos Livres. A Olhos Livres tem se tornado uma mostra fundamental dentro desse campo de circulação. São filmes que já estrearam, ano passado e esse ano a gente teve o privilégio de ter filmes incríveis, uma mostra de suma importância. Mas o que é e o que vai se tornar eu não tenho como te responder, a gente lança uma coisa no mundo. A gente falou no texto da curadoria sobre essa dobra no tempo, a curadoria está neste lugar, não é sem olhar o que foi Tiradentes, e também não é sem almejar, sem lançar algo para frente, mas tudo isso muito imerso no nosso presente.
FVR: Eu acho que, de fato, a curadoria ou a programação, acho que o termo programação é melhor, faz uma proposição a partir do que os filmes apresentam. E a partir também de discussões ou fenômenos que a gente tem acompanhado nos últimos anos em um curto ou médio prazo, que a gente tem entendido, e vai se consolidando e a gente tá um pouco atento a entender para onde aquilo tá indo e tentar fazer um recorte, elaborar alguma coisa. De como as coisas estão se movimentando, quais as ideias que se apresentam, então a gente organiza isso. Há também as questões de mais longo prazo, que eu acho que tanto eu quanto Lila estamos atentos à maneira como se move a história do cinema brasileiro. E a gente sabe que Tiradentes está dentro, a atenta, a essa dinâmica de como se move a história do cinema brasileiro. Algumas coisas permanecem, alguns problemas seguem, outras tem alguns desvios, outras coisas a gente consegue colocar em evidência. Eu acho que há ideias importantes para gente entender como funciona o campo do cinema brasileiro, suas precariedades, mas também suas possibilidades, algumas novas, outras que a história nos ensinou. E por outro lado, eu sinto também que num festival a gente faz esse recorte de proposição. A gente não tira da cartola e fala: olha, a nossa criação é genial! Essa conversa de curador enquanto artista, inclusive no cinema, é uma bobagem. Curador bom é curador discreto. A gente não é artista, a gente não tá criando nada, a gente depende dos filmes. A gente depende inclusive da atenção a maneira como esses filmes, ou o cinema brasileiro, vem acontecendo dentro de um processo cultural de curto, médio e longo prazo. Tanto que a gente tenta justificar todo ano, cada temática, voltando um pouquinho no tempo e entendendo como que ela se deu. E os filmes são o que fazem o festival. É por isso que eu acho que é importante esse exercício da crítica, de entender, ou de se indagar, sobre o que esses filmes estão apresentando. Porque esses filmes são um recorte de uma produção que a gente apresenta nessa negociação, que é a curadoria, que não é feita por uma pessoa só. As vezes eu sinto que se cobra da curadoria como se ela tivesse inventado o festival e inventasse os filmes.
LF: Como se a gente tivesse uma supraconsciência também.
FVR: Exatamente! A gente tá dentro do processo. Eu acho que o poder é a possibilidade de fazer o recorte e a proposição, mas não com total autonomia. Os filmes nos apresentam ideias, os filmes se apresentam, os debates se apresentam e se fazem. Programadores agenciam e modulam. Quando a gente tá lá no Yves Alves, as pessoas, o público, os críticos, os cineastas, tão fazendo esse debate. Não é uma afirmação populista, dizer que todos fazem o festival. É uma discussão que acontece, e Tiradentes talvez seja importante, porque preza essa discussão e essa convivência. Essa ideia de comunidade provisória a cada ano é que nos parece muito poderosa. Voltada ao que a gente acumulou até então, e o que a gente pode fazer daqui para frente. Então eu acho que de fato a gente tem esse poder circunstancial, limitado e estratégico, acho que um pouco por aí.
LF: Acho que também cabe pensar que os festivais têm essa particularidade. Os curadores às vezes são os produtores do festival, então tem que ir atrás do dinheiro, enquanto a gente trabalha para a Universo Produção com esse trabalho de programação. Acho que a grande incógnita vai ser como que o sistema dos festivais se mantém dentro desse regime de escassez de recursos. A gente tá vivendo uma onda né, as coisas começam um ano antes. A gente vai ter que ter muita força para manter o que esse ciclo trouxe, uma riqueza impressionante em termos de festivais de cinema. Ano passado pude acompanhar vários festivais que nunca pude ir. Então quero que Tiradentes continue sendo Tiradentes também como ideia dentro de um sistema de festivais e de proposições. Não só as mostras da Universo, como a mostra dedicada a patrimônio e o Cine BH que é mais atento ao mercado. Mas Tiradentes eu quero que continue existindo dentro de um universo riquíssimo de festivais de cinema. Que a gente possa ser um festival importante diante de festivais também muito importantes, uma riqueza de proposições de programação que eu acho fascinante. Que o cinema contemporâneo possa ser tanta coisa.
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