Presença e a volta às raízes

Perguntas e transcrição: Karina Liliane. Respostas: Andréa Laís. Revisão: Andréa Laís, Karina Liliane e Larissa Lisboa. Imagens: Renata Baracho.

Em Presença, seu mais novo projeto da carreira, composto por CD e álbum visual, a artista Andréa Laís faz um retorno às suas origens. 

A cantora e compositora alagoana Andréa Laís começou a construir sua relação com a música ainda na infância dentro da igreja. Com o passar do tempo, o desejo de navegar por outros estilos e sonoridades musicais a fizeram se aventurar por outros palcos. 

Em 2009 ela sobe pela primeira vez em um palco num teatro para se apresentar a convite do artista Basílio Sé e desde então nunca mais parou. Foram participações em festivais de música, com destaque ao FEMUFAL onde ficou em primeiro lugar em 2011 e 2013; projetos com diversos artistas alagoanos e passeio por vários estilos musicais até o lançamento do seu primeiro CD autoral, Solar, em 2017.

Agora com mais de 10 anos de carreira, ela lançou seu segundo CD no último dia 07/12 e se prepara para o lançamento do seu primeiro álbum visual. Álbum esse em que ela compartilha a direção com Beatriz Vilella, em uma produção Solar Produções e Beatrix Filmes, e em coprodução com Cinepopéia. 

Conversei com ela há alguns dias sobre o álbum visual Presença que será lançado hoje às 20 horas no canal do Youtube da cantora composto por 5 músicas do CD homônimo, e você confere agora como foi esse papo.

Karina Liliane: Olá Andréa, como você está? Para iniciar nossa conversa eu gostaria de saber o que é Presença para você?

Andréa Laís: Nossa, nunca tive que responder essa pergunta, mas vou começar por onde fui logo levada. Acho que antes de tudo eu encarnei com essa ideia de Presença e desconfiava que talvez seria esse meu novo projeto. Sempre vivi com muita expectativa de futuro e isso me atrapalhou muito. Desde criança eu me frustrava muito quando planejava algo e aquilo não acontecia, o que me levava a uma infelicidade profunda. Na adolescência esse sentimento se amplificou até que eu comecei a entender que isso me fazia muito mal, e passei a tentar me concentrar a viver o agora, no presente onde eu percebi que era mais feliz. Estar presente é viver com intensidade aquele dia que não necessariamente será eufórico, nem todos os dias são bons, mas eu queria vivê-los bem, de maneira honesta comigo e com as pessoas que estavam junto em cada momento. Foram coisas que eu fui pensando ao longo de anos.

Ir morar em Salvador foi o empurrão final dessa experiência de presença. Eu me desapeguei de todos os meus planos, e disse, eu vou viver essa experiência de morar em Salvador sozinha, com presença, um dia de cada vez. Por último, tem a minha vivência espiritual, mística, religiosa que por conta dos estigmas com a fé cristã eu acabava falando pouco. E, numa dessas experiências religiosas, um professor e teólogo propôs uma reinterpretação da trindade cristã, substituindo os conceitos de pai, filho e espírito santo por aqui, agora e a gente.

Enfim, é muita viagem essa pergunta, mas eu me dou por satisfeita nessas três divagações aí [risos]

KL: Hoje o foco da nossa conversa é o álbum visual, mas como você já começou a falar Presença é um projeto bem mais amplo e significativo na sua carreira e na sua vida. O que você pode nos contar sobre ele?

AL: Essa pergunta é mais fácil, é menos viajada e filosófica para mim [risos]. Agora eu vejo que foi um caminho muito orgânico. Acho que quando você realiza um projeto e o finaliza, joga no mundo, um ciclo se encerra e eu senti isso quando lancei o Solar, que ele encerrou um ciclo de experiências que vivi nos anos anteriores. A partir dali eu estava aberta e sensível as próximas vivências musicais e de vida, que me levariam a novos lugares e descobertas.

Presença já era uma ideia, mas começou a acontecer mesmo quando o recurso chegou. Eu já estava viajando a um tempo nisso, tanto no conceito quanto nas sonoridades, as coisas que eu tinha experimentado em Salvador foram muito boas porque pude acompanhar de perto novidades musicais interessantes, artistas que eu admiro misturando música brasileira com batidas eletrônicas, algo que era muito distante para mim. Por ignorância, antes achava que era só o “tunst tunst” da boate, que não tinha a ver comigo, e lá em Salvador fui ouvindo muito e pensando nossa dá para fazer muita coisa com isso, quantas possibilidades essas misturas poderiam render. Mas deixei isso tudo guardado até o dinheiro chegar por conta da minha experiência anterior com Solar [risos].

Quando fui aprovada na Aldir Blanc, escolhi primeiro o produtor musical por conta da linha sonora que eu queria construir no disco. Também me interessava por esse lugar completamente estranho para mim que era o da música eletrônica, além da relação que a gente tinha construído. Já que eu queria um pouco mais de autonomia na construção desse trabalho e sentia que com o Cassius Cardozo teria isso. Porque a gente que é artista mulher, cantora e não é instrumentista, junto com todo o universo masculino da música, tem essa limitação de você se sentir ignorante e incapaz por talvez não dominar o termo técnico e não poder opinar em um arranjo, não poder dizer “não está bom para mim”. E nesse segundo projeto eu queria que ele tivesse mais de mim em toda sua construção, queria ter essa autonomia no processo, poder falar e ir aprendendo junto. Então sabia que de cara tinha que escolher alguém que me desse essa tranquilidade e espaço seguro.

Mas quando o escolhi, eu não tinha nenhuma música. Eu só disse “acho que vai ser presença, e eu quero construir um projeto novo” e eu também tinha já esse desejo que seria algo que nasceria junto com algo audiovisual. Nesse momento entra Beatriz Vilela que é minha amiga de muitos anos e dessa aproximação com ela vem a vontade de criar algo que nascesse junto o processo sonoro e as imagens. 

Além disso, teve todo o desafio que foi construir algo durante a pandemia. Foi muito bom ver a disposição que Cassius teve de testar uma nova metodologia comigo sem a gente saber muito o que ia fazer, dizendo grave suas ideias e me mande sem pensar, não tenha filtros para compartilhar comigo que é a partir disso que a gente vai conseguir construir.

Acho que a última coisa importante de pontuar é como esse trabalho é um marco para mim, porque eu já tinha me conciliado com a ideia de que era intérprete, que foi algo que me atrapalhou muito no início da carreira. Eu me sentia meia artista por isso, apesar de achar que a interpretação é uma arte singular, me sentia incomodada porque tem coisa que só eu poderia dizer. Só eu, daquele jeito que estava pensando, poderia expressar. Aí estar em Salvador, em um lugar de efervescência de muitos jovens compositores foi muito provocador para mim. Lá estudei na Escola Baiana de Canto Popular e a minha professora falava muito sobre isso e até me incomodava, mas depois fui entender o que ela dizia. É que a gente também escreve pouco porque a gente não foi desafiada a escrever ou ficamos tentando escrever a partir de uma estética que não é a nossa. Mas por tanto as pessoas me encorajarem esse processo acabou fluindo de um jeito que é meu e as pessoas que eu tinha coragem de mostrar foram dizendo para eu olhar com mais atenção porque tinha música nos meus textos.

Em paralelo a isso participei de um projeto de experimentação criativa chamado “Queira” da Camila Jatobá, e ela começou a me chamar atenção sobre isso: a resposta da sua pergunta tá lá dentro de você, você tem que ter coragem de mergulhar. Eu sou muito fã do Caetano, louca por ele e aí  comecei a pensar eu não vou compor como ele, não existe isso [risos] simplesmente porque eu sou Andréa, é outro caminho. Comecei então a olhar para esse meu lugar com menos medo, com mais coragem, assumindo que tinham traços estéticos da minha história, da minha herança e que nesse momento é isso que me toca, que a partir disso que eu ia conseguir falar, não só as palavras, mas também esteticamente. Aí acho que entram as sonoridades fortes regionais que foi algo que eu neguei muito tempo por enxergar de uma forma muito limitada, inclusive porque não estava na moda o nordeste como ele está agora [risos]  e em Salvador vi como as pessoas estavam fazendo algo muito regional e que se tornava universal, como Luedji Luna, Xênia França, Larissa Luz que tinham estourado nacionalmente na época e me perguntei onde eu ia fazer esse mergulho, e era em Alagoas. Então é uma libertação para mim esse projeto em todos esses sentidos. 

Enfim, foi assim que nasceu. 

KL: A gente já começou a falar dessa sua vontade de unir a questão sonora com a visual e como essa sua amizade com a Beatriz Vilela te deu coragem de se aventurar por esse lugar desconhecido que era o audiovisual e era justamente o que eu queria te perguntar. Já era um desejo seu desde o começo do desenvolvimento desse novo disco a criação de um álbum visual ou não, foi algo que foi aparecendo ao longo do processo e você foi se abrindo para isso e construindo esse outro lugar junto a ela? 

AL: Sim, desde o início. A gente fez uma inscrição dupla no edital, então quando os dois projetos foram aprovados, eles foram nascendo juntos. 

A gente escreveu primeiro um projeto que era um álbum visual, e meu grande empurrão para isso foi o álbum visual da Luedji Luna que eu fiquei apaixonada, era minha referência. Mas como o edital era para gravação de um DVD, eu e Bia ficamos com medo do projeto não ser aprovado por conta disso e mudamos tudo. Decidimos que iríamos fazer um documentário, até por eu ter completado 10 anos de carreira em 2019, e após a aprovação ficamos alguns meses pensando que era isso mesmo, construindo cenas, ideias. Eu comecei a cantar na igreja, na Igreja Batista do Pinheiro e com toda essa situação no bairro a gente já estava até planejando gravar lá. Mas chegou um momento que olhamos uma para outra e assumimos que não era isso que a gente queria fazer e voltamos ao que tínhamos sonhado inicialmente.

Começamos a mergulhar nessa viagem do álbum visual que era bem maior do que o que a gente fez, porque a gente queria gravar em Maceió, em Salvador, no sertão [risos] era uma loucura [risos]. Até por que depois, Presença foi se transformando nessa ideia de movimento, desse movimento de saída que te traz de volta, que se distanciar é um mergulho de volta para si. Mas por conta do orçamento e da pandemia, a gente percebeu que era loucura tudo isso, aí foi outro momento de virada do projeto e quando ele foi ficando mais próximo do que virou. E tudo foi se construindo completamente junto com o álbum. 

As músicas foram chegando muito organicamente porque eu sabendo o que queria fui falando com as pessoas certas que eu acreditava já ter músicas para o CD ou que pudessem compor pra ele e quando a gente decidiu fazer o álbum visual tudo foi virando imagem para mim até o momento em que eu e Bia sentamos para de fato escrever o roteiro. 

Não sei se vamos conseguir chegar nisso no resultado final, mas a ideia era que deixasse claro esse caminho percorrido, um caminho mágico, essa viagem sobre as referências, sobre esses espaços imagéticos do disco, da experiência do mar, do sertão, do urbano. Todos os lugares que o disco caminha sonoramente a gente queria passar também no que íamos mostrar de imagem. Foi assim.

KL: Essa foi a sua primeira experiência com audiovisual, certo? Como foi para você assumir mais de uma função de uma só vez nessa nova área artística? 

AL: Primeiríssima [risos]. Não foi uma escolha consciente porque eu não sabia onde estava me metendo [risos]. Acho que foi orgânico por eu ter essa característica de querer controlar, característica até ruim né, e no início eu achava que ia ser algo tranquilo, não por subestimar o trabalho, mas por ignorância de não entender a densidade dele. Como eu já fazia as minhas produções dos shows, dos outros projetos, todas as etapas, foi meio orgânico só que completamente sem conhecimento.

Depois de experimentar, acho que quanto mais dividido o trabalho estiver no audiovisual mais sucesso você vai ter em todos os sentidos. Porque para mim sucesso tem a ver com ser bem feito, bem realizado e pouco aperreio [risos] que as coisas consigam fluir. E, como era minha primeira experiência com uma equipe grande, sei que pequena para o audiovisual, mas grande para mim, formada por mulheres, era muito importante que esse trabalho fluísse bem porque eu acredito no poder de mulheres juntas e mulheres juntas trabalhando. Acredito que é um espaço de menos disputa, menos hierárquico, de trabalho mais partilhado e a gente teve essa experiência na minha visão. 

Tô feliz, mas foi uma loucura [risos]. Lembro que a equipe só chegou a essa quantidade de pessoas porque a Bia ficou no meu pé dizendo que era importante, já que eu estava mais preocupada com o orçamento, dizendo que não ia dar. Hoje eu agradeço muito que eu ouvi todas as chamadas de atenção dela. Por exemplo, eu tive a maior crise com a direção de arte antes de encontrar Lyara Cavalcanti, porque eu tinha pensado uma direção que eu não conseguia contactar por meses, até que chegou um momento que o projeto estava muito avançado, e eu disse vou desistir e vou fazer com o que a gente tiver. E eu olho agora e digo “Meu Deus” se a gente não tivesse essa direção de arte, o trabalho não iria ser 50% do que se tornou, o trabalho mudou muito, muito com a direção de arte. 

Lembro também da Mayra Costa que ela não estava na equipe, entrou porque a gente queria imagem de drone e depois fiquei pensando o que seria esse projeto sem ela. Porque ela foi uma assistente que fez de tudo um pouco, ainda entrou na coprodução, virou montadora. 

Cada pessoa que entrou na equipe foi muito importante e no próximo eu colocaria ainda mais gente para distribuir o trabalho e potencializar.

KL: A experiência do set foi muito diferente do que você imaginava? Em quais aspectos?  

AL: Foi, acho que foi assim. Foi diferente positiva e negativamente. Tipo, acho que eu não tive tanto tempo para pensar como ia ser pelo fato de estar muito envolvida com o trabalho em todas as etapas. Não gastei muito tempo pensando para além da parte logística/operacional. Eu só pensava nisso, onde a gente vai dormir, onde a gente vai comer, como a gente vai se transportar etc. Mas eu não gastei muito tempo viajando em como seria isso, só fui começar a me aperrear na reta final, faltando um mês, foi quando comecei a me dar conta que eu ia ter que fazer tudo aquilo. 

Aí comecei a pilhar com isso, a me punir um pouco porque eu disse “eu devia ter contratado alguém para fazer o trabalho comigo”, alguém para fazer a preparação para cena. Enfim… mas eu também não tive muito tempo para pensar, eu só sofri, chorei algumas vezes, achei que eu ia ser horrível, que eu ia travar e pronto. 

Mas o set foi muito diferente para mim. A minha sensação é que nessa experiência ele foi se construindo no processo, se adaptando ao que estava ali proposto, aquele lugar, aquelas pessoas, ao fato da gente não ter experiência. Eu digo a gente porque assim, eu nunca tinha trabalhado, mas a Bia também é muito jovem nesse processo. Ela está no meio do cinema há muito tempo, no papel de direção ela também está aprendendo, e eu enxergava muito isso, alguém que está aprendendo. 

Por isso acho que o set acabou sendo muito mais livre, a gente foi criando coisas que não existiam de forma muito orgânica. Porque tinha também uma deficiência da própria pré-produção, a gente não conseguiu fazer visita de locação, então pensamos uma coisa, chegava lá não era bem isso que a gente tinha como espaço, como disposição, então tinha que criar na hora. Por isso que acho que essa equipe foi maravilhosa, porque não se estressou, não pilhou, não deixou se atrapalhar por nada disso. 

Isso eu acho que é um ponto positivo de quem tá aprendendo. De deixar as coisas fluírem, ouvir quem tem mais experiência e acreditar no processo criativo do dia que a gente está, o momento, o espaço, o lugar, a natureza que estava chamando o que é possível tecnicamente de realizar bem feito. Nesse sentido foi completamente diferente, mas para melhor. 

Até o que eu mais temia no set, que era a minha responsabilidade, foi muito melhor do que eu imaginava. Achei que ia ser muito mais desesperador e quando começou eu estava lá cantando. Assim, passei por uns aperreios, fiquei tensa, mas é isso. Tem que cantar e foi ficando mais tranquilo depois, mais cansativo também, mas tranquilo.  

E de novo, acho que isso só aconteceu por conta do espaço que se criou, esse espaço de confiança, seguro. De ter uma direção, nesse caso a direção da Flávia Correia, que pegou na minha mão para construir. Pegou na minha mão para entender ali com quem que ela estava lidando. Se tivesse outra direção de fotografia eu poderia ter travado completamente, porque a Flávia foi meio diretora também [risos] 

Enfim, nesse set eu acho que todas as posições foram borradas, todo mundo contribuiu, deu o que pode, o que sabia, somou e aí foi diferente também para mim. Acho que foi uma experiência boa assim, muito boa.

KL: Agora falando um pouco sobre a construção da equipe. Você já comentou sobre essa potência que você enxerga em ter mulheres juntas trabalhando e no álbum visual é isso, mais de 80% da equipe é formada por mulheres, todas as chefes de equipe são mulheres. Ter essas mulheres dessa forma no projeto já era um critério de escolha quando você foi pensar nas pessoas ou não? 

AL: Era, isso já estava desde o início. Nem sabia quem seriam as pessoas, mas queria que fosse uma equipe só de mulheres. Eu nem pensava no processo todo ainda porque não tinha dimensão de tudo, mas por conta de ser meu primeiro trabalho audiovisual, de saber o desafio que era para mim estar em frente às câmeras, eu queria primeiro construir esse espaço seguro, sororal, de me sentir à vontade. 

E, segundo, é mesmo porque acho que Presença tem uma potência que é feminina. Lembro até, acho que foi a Flávia que falou isso, em uma das nossas reuniões, quando ela viu o primeiro projeto que não estava nada exposto sobre essa questão, sobre empoderamento feminino, mas existe essa mensagem atravessando o projeto. 

É um processo de autoconhecimento, de auto empoderamento que tem haver em como isso se alastra na experiência com outras pessoas, não é um processo egoísta meu. Então para mim era muito importante trabalhar com mulheres porque eu queria um ponto de vista das mulheres sobre esse trabalho e para mim, se eu chamo uma equipe de homens, eu posso ser a diretora, escrever o roteiro, mas o trabalho vai sair outro, é completamente diferente. Eles podem ter a mesma descrição técnica, mas se eu chamo uma equipe de homens vai sair uma outra leitura, um outro ponto de vista porque eles não conhecem, não conseguem se aproximar do que tem de melhor e pior em mim, meus medos, minhas dores, minhas alegrias. É uma limitação mesmo de ser quem a gente é. Então eu sabia que com mulheres ia conseguir somar esses pontos de vista que eram importantes da experiência de cada uma, no corpo de cada uma. 

Outra coisa é que estou cansada de trabalhar só com homens. Sou muito grata, muito mesmo, a muitos que passaram pela minha trajetória, mas muitas vezes eu não me sinto à vontade, existe uma hierarquia masculina com mulheres e entre eles mesmos. E trabalhei muito com homens a minha vida toda, o mundo musical é muito masculino, então é no estúdio, é na gravação, é no show, é produtor de palco, é tudo homem e para mim era muito importante na primeira oportunidade que eu tive de construir um projeto do zero poder escolher e dizer “não, agora eu quero trabalhar só com mulheres”, experimentar e a Bia também estava com essa mesma vontade.

Acho que foi a melhor coisa que a gente fez, a escolha mais acertada.

KL: O álbum visual passeia por várias regiões do nosso estado e várias cidades. Acho que assim como a escolha da equipe, a escolha dessas locações teve papel importante na construção do projeto. Como foi esse momento da escolha das locações?

AL: Sim. Acho que primeiro a gente escolheu o sertão, inicialmente era só Piranhas, mas que por motivos logísticos e de patrocínio acabou se transformando em Olho d’água do Casado e Piranhas. Por um motivo simples, porque Presença começa com essa referência do aboio que é completamente uma tradição sertaneja do vaqueiro, remetia a uma herança do meu avô, eu aprendi a aboiar com ele, ele é de Pão de Açúcar do sertão de Alagoas. Então o sertão foi o primeiro espaço que a gente escolheu.

Depois, a gente sempre quis gravar em Maceió também. Porque a ideia do Presença não era em nenhum momento mitificar eu como uma sertaneja ou uma ribeirinha. Eu sou da cidade, vivi a vida toda em Maceió, então por mais que essas heranças estejam fortes, eu nem sou uma sertaneja nem uma ribeirinha.

Aí tinha essa coisa de gravar na praia, Maceió só se grava a praia, e por mais que a gente ache lindo, queríamos trazer outros espaços importantes. Então veio primeiro a referência do Jaraguá que inicialmente era uma escolha só estética, por conta das paredes do Jaraguá que estavam lindas, cheias de arte, e a gente queria trazer esse lado mais urbano. O Teatro Homerinho também, porque estava no Jaraguá, e o que acho mais curioso é que a gente pensou só pelo fato de estar no Jaraguá e porque eu queria gravar lá por ser um projeto importante para mim, por já conhecer a Ivana Iza de um tempo, era um espaço massa que a gente poderia realizar a ideia de um palco, a gente até pensou em fazer no Teatro de Arena, mas o Homerinho era perfeito por estar no Jaraguá.

Mas o curioso é que a música fala muito sobre um processo de construção e desconstrução, traz essas imagens de um lugar em construção. Daí quando a gente fez a visita técnica percebemos que seria mais importante do que o que a gente imaginava porque ele está em construção e dialoga completamente com a música. Então assim, acho que foi o mais interessante de todas as escolhas foi esse diálogo com uma estrutura que poderia nos atrapalhar e só somou.  

Quando chegou Benza Ela, fomos completamente levadas para o Mercado, já imaginamos essa música lá. Tatuamunha inicialmente iria ser Barra de São Miguel e isso também foi a música que levou. Quando chegamos em Eu Vôo eu queria muito a referência de mar e mangue, visualizava muito o mangue para essa música. Bia tinha ido à Praia das Conchas, e falou: olha lá tem mangue e tem mar pertinho. Sendo que eu já vou a Tatuamunha de muitos anos, adoro aquele lugar, vou com a minha família desde sempre. Aí esse ano no meu aniversário eu acabei indo para lá comemorar e quando vi o lugar de novo voltei para Bia e disse que a gente tinha que ir para lá. 

Não é só um mar e um mangue, mas eu lembrei de tudo naquele lugar, das pontes e foi massa porque depois chegou ao bobo gaiato que acabou se tornando uma referência importante e que é de lá da região. 

E foi isso. Foi assim que chegaram.

KL: Continuando nessa pegada da tua vivência no audiovisual, eu queria saber se depois de passada todas as etapas de construção desse projeto você enxerga o audiovisual como um outro espaço artístico para você habitar?  

AL: Ah completamente [risos] completamente. Na verdade, eu estou apaixonada. Era uma coisa que eu já pensava antes, mas eu pensava mais no audiovisual em diálogo com a sociologia. Sempre pensava que eu queria transformar minhas pesquisas em projetos audiovisuais documentais porque a academia acaba sendo muito limitada pela linguagem. Você escreve uma tese, no máximo ela vai se transformar em um artigo de vinte páginas e as pessoas vão ler esse artigo e, mesmo assim, é uma comunidade muito reduzida que vai acessar. Então eu já pensava muito no audiovisual por isso, era algo que queria investir depois de terminar a trajetória difícil do doutorado em sociologia. 

Mas aí de novo foi pela arte o caminho primeiro. Na verdade, agora acho que tenho mais clareza que nada está apartado, tudo está dialogando, tanto as camadas de reflexão, de pesquisa que a sociologia me traz com as experiências artísticas. Com essa possibilidade agora de transformar isso em materiais audiovisuais, em projetos.

Eu achei fascinante, estou achando todo o processo incrível. Eu sou uma pessoa muito racional, então não imaginava que meu primeiro projeto audiovisual pudesse brincar tanto com outros universos artísticos. 

Nunca me vi sendo muito ousada artisticamente em termo de linguagem porque normalmente eu uso caminhos muito racionais para pensar mesmo, para viver. Aí é quando eu volto para o mesmo assunto, como você ter uma equipe e outras pessoas somadas ao projeto lhe desafia e potencializa. Então quando eu vejo hoje, desde as fotos, eu digo assim, que potência! 

A potência é multiplicada em mil vezes do que a arte pode dizer, o que uma música é, que já é incrível, mas do que ela pode se tornar quando você coloca várias camadas de arte, os vários artistas envolvidos desde quem fez o chapéu, a roupa, a direção, depois como as meninas decidem captar isso. E o audiovisual é isso, essa explosão da criação artística. 

Agora para mim está sendo isso, é como se explodisse ao máximo o que eu já achava incrível, que a música era capaz de me levar para esse lugar de dizer a arte é capaz de parar, eu sou assim, eu paraliso, aquilo é capaz de causar tantas sensações e emoções, me levar para caminhos diferentes e o audiovisual é como se fosse essa experiência a graus elevados.

Espero que tenha sido o primeiro e espero também não estar na frente da câmera todas as vezes [risos] Fiquei com muita vontade de dizer isso quando acabou. Eu queria um dia estar trabalhando sem estar na frente da câmera, estar no processo do que estava acontecendo. Porque você entra num processo de criação artística e tinha hora que eu queria estar do outro lado, mas não dava. Espero que chegue esse momento da experiência sem precisar estar sendo filmada [risos] 

KL: Praia da Paciência é uma composição sua com a sua irmã Alana Barros, certo? Como foi essa experiência e a sensação de vê-la traduzida em imagem?

AL: Está sendo tudo, porque eu ainda não vi Praia da Paciência montada [risos]. Então o que a gente viu até agora já foi incrível. Essa música é uma poesia da Alana e tem essa sensação muito forte de tradução dos sentimentos pelo fato da gente ter essa ligação muito intensa, não só pelo fato de sermos irmãs, porque eu acho que nem todo irmão tem essa experiência, não é obrigatório para ter sucesso [risos]. Mas Alana escreve poesias e teve uma época que ela escreveu muito e aí na verdade ela nem imagina isso como música. O Cassius, produtor, tem um papel muito forte de transformar essa poesia em música, porque eu peguei e disse “eu quero que isso se transforme em música, não sei como” [risos] Várias coisas eu fui propondo que era a minha mãe, a minha avó, nessa ideia de um mantra e foi por causa disso, desse mantra, que eu escrevi o refrão. 

Especialmente com Praia da Paciência o processo foi o contrário, as imagens chegaram primeiro porque eu morava em Salvador perto da Praia da Paciência. Sempre me chamou atenção esse nome e enquanto eu estava lá, ela foi uma praia muito importante para mim porque era a praia perto de casa.

Eu estava morando sozinha, não tinha carro, não conhecia Salvador direito, não tinha muitos amigos inicialmente, então essa praia foi meu refúgio muitas vezes. Um lugar que me fez refletir muito e ter paciência com os processos.

Lembro do primeiro dia das mães que eu estava em Salvador e eu nunca tinha achado que era tão importante para mim o dia das mães até não poder estar em Maceió com a minha. Não tinha ninguém na cidade, estava todo mundo com sua mãe na hora do almoço, e eu saí sozinha numa depressão, peguei a bicicleta do Itaú, fui comer um acarajé ali perto do Rio Vermelho e depois para Praia da Paciência ficar ali pensando.

Eu vivi várias crises que foram digeridas nesse lugar, então eu queria que tivesse Praia da Paciência no disco. Aí quando eu me reencontrei com essa poesia da Alana que é uma poesia que ela escreveu quando estava também estudando fora, eu disse é isso. 

Quando eu estava na praia era como se tivesse realmente acessando essas vozes ancestrais me dizendo tenha paciência, o dia não está muito bom, tenha paciência que amanhã pode ser melhor. E a música em si já foi muito importante, mas a construção das imagens, do lugar intenso de afeto que tem essa música, e um pouco de reverência ancestral às mulheres da minha história, construindo isso com a mulher que é minha companheira da vida, que é minha irmã foi realmente muito especial.

KL: O álbum visual foi desenvolvido por meio da Lei Aldir Blanc de incentivo à cultura. Como você vê o impacto de editais de incentivo a cultura como esse para os profissionais da cultura, em especial os alagoanos?

AL: Nossa, eu acho fundamental. Eu tenho comentado muito sobre isso aqui em casa com Alana porque eu estou impressionada com a quantidade de bons projetos, projetos de super produções que tem saído aqui e a gente fica pensando o quanto de talento e potencial de criação artística é limitado pela falta de acesso. 

Porque a gente tem que ficar feliz mesmo com essa possibilidade, mas a gente sabe que isso teria que ser um incentivo contínuo. Eu tive agora o privilégio de fazer um projeto com verba, não sem dificuldade, mas com verba e o quão digno é para o trabalho do artista e de toda a cadeia que cada artista que pensa um projeto movimenta. O quão digno é, porque eu nem vou dizer que é luxo, mas é digno a gente trabalhar com verba. E mesmo com dificuldade poder realizar as coisas que a gente quer. A gente tem potencial, muito potencial concentrado.

E, nossa, se eu tivesse fazendo esse projeto independente ele não seria o que se tornou. Principalmente porque ele ia bater numa barreira que deveria ser ridícula que é: eu ia tentar puxar para todo lado para não fazer as coisas. Tudo se tornaria obsoleto se eu não tivesse verba. O figurino tal, o acessório tal, porque a gente não tem dinheiro então temos que fazer o mais cru possível e ser menos ousado. Eu não acredito ainda no que esse projeto se tornou e acredito que muito artista fica pensando como eu. Infelizmente a gente não tem tantas oportunidades de encontro para conversar sobre isso, como cada um recebeu e lidou com esse incentivo, mas é fundamental. 

Em Alagoas, que é um estado difícil, se o Brasil é difícil para fazer arte, Alagoas é babado [risos] a minha sensação é que as pessoas enxergam arte complemente como acessório dispensável. Não entendem a profundidade do fazer artístico, principalmente a iniciativa privada que dificulta muito. Então você tem uma cadeia toda que fica esperando da iniciativa pública, que é obrigação, mas que não vai conseguir movimentar se não tiver a iniciativa privada. Sempre me dá muita agonia as empresas em Alagoas que acham que apoiar artista é fazer favor, não entendem a importância sabe.

Eu fico pensando: o que é Alagoas? Essa ideia que a gente foi construindo de Alagoas, o povo alagoano sem a construção de imagens, de memórias, de linguagens, nem gosto de usar a palavra cultura porque todo mundo usa e ninguém entende o que é cultura. Mas o que é cultura alagoana? São as memórias de um povo, a história, a tradição, os hábitos, as músicas, o que a gente veste e a gente faz. A gente vai padecer em água de coco, coqueiro, de mar [risos] e não sobra nada? 

Então eu espero que a experiência da Lei Aldir Blanc tenha servido para mostrar o quanto esse tipo de política faz movimentar e surgir criações importantes para a sociedade alagoana. Porque a gente sabe que a verba investida é maravilhosa para gente, mas não é uma verba absurda para os cofres do governo. Que os governantes que vierem entendam que precisam continuar investindo, sobretudo o governo federal que não está fazendo mais do que obrigação. E que continue.

KL: Para finalizar, o que você deseja para esse projeto que está nascendo para todo o público hoje?

AL: Nossa, começou e terminou com uma pergunta difícil [risos]. Mas eu acho que assim, sobretudo eu desejo que as pessoas escutem e assistam se conectando com suas próprias histórias. Porque acho que nossas raízes nos constroem e nos tornam mais fortes. Quando a gente esquece quem a gente é, ou quem veio antes da gente, e isso não é sobretudo um papo clichê de autoconhecimento. Quando a gente sabe quem a gente é, de onde a gente veio e quem veio antes da gente e possibilitou a gente chegar até aqui, isso é um posicionamento político forte para dizer assim: a gente sabe o que quer, e sabe para onde quer ir.

Então acho que o que eu mais desejo é que através do Presença as pessoas possam fazer suas próprias viagens internas, de se reconhecerem, de olharem para suas histórias, nossa ancestralidade. Porque para além de cada trajetória familiar nós somos ancestralidade alagoana, temos que reconhecer tudo que é potência e nos fez chegar até aqui. Nós somos resultado dessa Alagoas sofrida e paradoxal, mas que também está brotando esse tipo de resistência. 

Então se Presença conseguir chegar a cada um e fazê-los viajar para suas histórias, de quem quer que seja, de seus avós, de seus pais e reconectar, para mim já vai ser muito especial. 

Serviço:

O quê: Lançamento álbum visual Presença

Onde: youtube.com/AndréaLaís

Quando: 14/12/2021 

Horário: 20 horas

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