Texto: Sereia (dir. Ronald Silva)

Texto: Larissa Lisboa

Assisti a Sereia pela primeira vez durante a Oficina Cinema de Guerrilha, envolta pela emoção de concluir aquela vivência tão desejada e que me ensinara tanto, ministrada pelo instrutor Rosa Caldeira. E por mais que tivesse consciência do afeto que sentia pele diretore deste filme, artista alagoano das artes cênicas, do canto e da comunicação social, santanense Ronald Silva, jamais dimensionei o quanto do afeto e acolhimento que elu emana na vida, caberia e transbordaria a partir de seu primeiro filme.

Esta escrita aqui está também carregada de afeto, e isso pode ainda me cegar para enxergar Sereia com distanciamento, mas não acredito que isso me impossibilite de escrever sobre esta obra, uma vez que não me vejo como uma escritora crítica, mesmo sendo uma pessoa que investe em exercitar uma consciência crítica.

Talvez em alguma medida evitei escrever sobre o filme de Ronald já que não planejei fazê-lo, ao que agora me permito e obedeço a vontade que me tomou após revê-lo em meio a programação da 12ª Mostra Sururu de Cinema Alagoano.

Muitas vezes ao rever filmes, mesmo quando ainda sob o efeito do afeto que eles despertam consigo enxergar de forma mais técnica ou mais distanciada. Mas este não é o caso de Sereia, o vejo sem o efeito do encantamento que senti quando o vi pela primeira vez, mas ainda o vejo mergulhada em afeto.

Ronald compõe o elenco de outro filme que também está nesta edição da Mostra, As histórias que não tive memória para esquecer (dir. Elizabeth Caldas), aponto isto não apenas para registrar a participação delu, mas também para mensurar que consigo perceber a atuação delu em As histórias de forma distinta a atuação delu em Sereia, principalmente porque o personagem que elu roteirizou e dirigiu em Sereia tem elementos autobiográficos, e isso também me faz ter mais empatia pela atuação, pelo roteiro e pela direção de Ronald.

O cinema autoreferenciado conecta mais profundamente com o meu desejo de conexão e pertencimento, embora sempre tenha me relacionado com tantas outras formas de construção de narrativas pelo audiovisual. A princípio me pus descrente de que saberia fazer um cinema autoreferenciado, até porque apenas em 2015, ao ver Retina (dir. Paulo Silver) – de autoria de outro diretor pelo qual também já cultivava afeto, foi que me pus a caminho de me libertar da minha descrença. (De fato, fiz e já havia feito filmes autoreferenciados sem assim reconhecê-los, muitos também nem reconhecia como filmes, até me trabalhar para parar de negar a minha filmografia.)

Na abertura de Sereia, uma das mãos de Ronald está em cena, e a sua presença nos guia pela gravação de um vídeo que elu está fazendo para encaminhar a uma amiga. Há espontaneidade nesta cena de abertura mas também é possível perceber que ela foi maturada para chegar nas imagens de representações de sereias.

O elemento Sereia está presente no filme, pelo postal de uma praia de Maceió chamada Sereia (praia da Sereia) e pela personagem da Disney, que é metade humana e metade peixe. A título de referência subliminar e curiosidade, compartilho também que a cidade de Maceió ficou popularmente conhecida como “sereia” ou “minha sereia” por conta da letra da música Minha Sereia, de Carlos Moura.

O uso da imagem de uma sereia recorrentemente é apresentado como mulher, como referência de beleza, sensualidade e perigo. Em muitos casos também o uso da sereia como ícone escancara a exploração da imagem feminina. Todavia, este não é o caso do filme de Ronald, no qual a Sereia está presente como subterfúgio para que brevemente o seu personagem possa ter a sua essência queer aceita.

O desenvolvimento do filme transcorre colocando a pessoa que o assiste como testemunha de uma videochamada entre um personagem queer não-binárie e sua irmã, trazendo questões como preconceito, discriminação, liberdade de gênero, de expressão, de vestir-se, de transitar, de conviver, entre tantas outras vivências que erroneamente podem ser vistas apenas como apenas de interesse de pessoas da comunidade LGBTQIAP+. Erroneamente porque a convivência seria minimamente justa se toda e qualquer pessoa estivesse disposta a ouvir e respeitar toda e qualquer pessoa.

Minha escuta e acolhimento foram fortalecidos  e refortalecidos por Sereia, adoraria saber que não foi só a minha.

Sobre Larissa Lisboa
É coidealizadora e gestora do Alagoar, compõe a equipe do Fuxico de Cinema e do Festival Alagoanes. Contemplada no Prêmio Vera Arruda com o Webinário: Cultura e Cinema. Pesquisadora, artista visual, diretora e montadora de filmes, entre eles: Cia do Chapéu, Outro Mar e Meu Lugar. Tem experiência em produção de ações formativas, curadoria, mediação de exibições de filmes e em ministrar oficinas em audiovisual e curadoria. Atuou como analista em audiovisual do Sesc Alagoas (2012 à 2020). Atua como parecerista de editais de incentivo à cultura. Possui graduação em Jornalismo (UFAL) e especialização em Tecnologias Web para negócios (CESMAC).

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