Quanto vale um curta?

Texto: Larissa Lisboa

“Quando nós rejeitamos uma única história, quando percebemos que nunca há apenas uma história sobre nenhum lugar, nós reconquistamos um tipo de paraíso.” Chimamanda Adichie

Se ao ler o título deste texto (“Quanto vale um curta?”) você esperou encontrar uma resposta objetiva, fica aqui o aviso de que não é este o propósito desta escrita.

A pergunta poderia ser “Quanto vale um filme?”, e caso fosse não seria incomum automaticamente assumir que estaria pautando filmes de longa duração, pois estes são os filmes popularmente difundidos e reconhecidos.

Dentro da narrativa oficial do cinema ou da história ou a partir da perpetuação de narrativas de longas mais populares, também se corrobora a narrativa única. Seja única pelo formato, seja única pela ausência de diversidade na frente e por trás das câmeras, porque reforça ações e práticas excludentes; ou única, principalmente, porque venha a ser repercutida como única verdade.

Volto aqui a conectar com outros momentos em que busquei escrever para romper com histórias únicas sobre a produção audiovisual alagoana, que por mais que esteja recebendo recursos, mantendo conquistas, não deixa de apresentar escassez de pesquisa, formação, difusão, crítica, registros publicados nos jornais e em livros locais e nacionais, o que facilita a difusão e perpetuação do que é ou vier a ser divulgado como história(s) única(s).

(Deixo aqui a indicação de  O perigo de uma história única” – The danger of a single story, palestra de Chimamanda Adichie para o TED em 2009, que tem entre os desdobramentos um livro com o mesmo título.)

Antes de voltar o foco completamente para a produção audiovisual alagoana, compartilho que o título do texto tem influência também no título do filme brasileiro Quanto vale ou é por quilo? (dir. Sérgio Bianchi), em específico no questionamento sobre valor.

Um curta vale? Criar narrativas audiovisuais de um minuto, cinco, quinze, vale mais ou menos que criar narrativas mais longas? Porque persiste a crença de que curtas metragens não são filmes? Porque um filme de qualquer duração precisa provar o seu valor? Porque o mercado invisibiliza a maioria dos filmes de curta duração?

Não há a pretensão de trazer a reflexão do valor de um filme de curta metragem como algo novo, mas sim de visibilizar e dar espaço aqui para uma visão comprometida com o reconhecimento dos curtas. Assim como não há uma pretensão de trazer respostas universais para nada, nem para as questões aqui elencadas.

O título deste texto foi proposto com o objetivo de expandir a possibilidade de interpretação de valor, seja valor financeiro, afetivo, histórico, social, e de validade também, do que é capaz de provocar valor, impacto, comover, equivaler. Uma demonstração do que podemos contemplar se não resumirmos, o valor de um curta, ou o que entendemos como valor (preço, custo, venda). 

É possível mensurar o valor simbólico de um curta-metragem? E em particular do curta-metragem alagoano?

Quanto vale um curta-metragem alagoano?

Na minha cabeça a resposta facilmente seria R$ 1.000.000,00 (um milhão de reais), para exercitar primeiramente um pensamento de valor expandido, valor que engloba custos para a produção, distribuição em mostras e festivais nacionais e internacionais (por dois anos), e remuneração de uma equipe mínima que represente o filme durante esse período virtual e presencialmente, e também valor de licenciamento para plataformas de streaming.

A defesa deste valor dentro da mentalidade e do cenário que facilmente resume o valor de uma obra artística ao valor do mercado, atropelaria esta ou qualquer outra defesa de uma remuneração de sete dígitos para um curta-metragem. Como em inúmeras oportunidades, é corriqueiro tratar os curtas como obras que não cabe no mercado, que podem ser superadas e até esquecidas. É prática para quem está comprometido com a mentalidade do mercado e em invisibilizar o valor de filmes de curta duração, o que não é o meu caso.

Em contraponto, no cenário dos editais de incentivo em Alagoas ainda aguarda-se que o orçamento de curta alcance seis dígitos, visto que o maior valor previsto para premiar projetos de filmes de curta duração foi de R$ 90.000,00 (noventa mil reais). Qualquer pessoa que se dê ao trabalho de criar um orçamento para curta metragem – ou acompanhar aqui essa breve conta: quinze profissionais com cachê de R$ 3.000,00 remunerados por um único mês (já justifica metade dos 90 mil reais)-, pode averiguar que é um valor que dificilmente custeia tudo que inúmeros projetos precisam para serem realizados.

Aqui não irei me debruçar sobre a distinção de remuneração para cada função desenvolvida na produção de um filme, parto da simples referência que R$ 3.000,00 é quase a metade do valor estipulado como salário mínimo ideal R$ 6.298,91 calculado pelo Dieese.

É vital salientar a ausência de pesquisa sobre a remuneração dos trabalhadores da cultura, assim como em relação a remuneração aplicadas a partir de editais de incentivo público. Também não há mensuração de quantos profissionais estão compondo a equipe de filmes, mas considero que a média praticada está entre dez e vinte profissionais.

Complemento aqui sobre a ausência de remuneração da equipe na etapa de circulação da obra de curta duração, devido ao orçamento abaixo do valor necessário para cobrir os custos de produção e finalização, na etapa de circulação do curta. Também frisar que as pessoas responsáveis pelos filmes não têm a obrigação de inscrevê-los em Mostras e Festivais de fora de Alagoas, o fazem quando podem e na medida que podem, com recursos próprios. 

Seria riquíssimo saber quantas inscrições foram feitas no total, para entender quantas vezes um curta foi escolhido ou invisibilizado. Visto que as curadorias não têm o compromisso de validar os filmes, sendo assim o reconhecimento que advém das seleções representam o resultado da escolha das pessoas que foram empoderadas pelos eventos, do conjunto de obras analisadas naquele momento, assim como também do perfil de cada evento, em caso algum definem o valor de um filme. 

Em um texto anterior que tinha como objetivo comprovar e visibilizar a circulação de filmes alagoanos em Mostras e Festivais de outros estados (“Para reconhecer filmes alagoanos realizados com incentivo público local que representaram o estado pelo Brasil e pelo mundo”), realizei voluntariamente um brevíssimo apanhado, para dimensionar a extensão da presença dos curtas alagoanos.

Contabilizei segundo o registro dos 40 curtas no Alagoar que 23 deles foram selecionados em Mostras e Festivais fora do estado, são eles: Km 58 (dir. Rafhael Barbosa, 2011), Exu – Além do Bem e do Mal (dir. Werner Salles Bagetti, 2012), O que lembro, tenho (dir. Rafhael Barbosa, 2012), Rua das Árvores (dir. Alice Jardim, 2013), Ontem à noite (dir. Henrique Oliveira, 2013), O Vulto (dir. Wladymir Lima), Jorge Cooper (dir. Victor Guerra Araújo, 2013), Atirou para Matar (dir. Nuno Balducci, 2014),  Wonderfull – meu eu em mim (dir. Dário Jr., 2016), As Melhores Noites de Veroni (dir. Ulisses Arthur, 2017), Avalanche (dir. Leandro Alves, 2017), Os Desejos de Miriam (dir. Nuno Balducci, 2017), Besta Fera (dir. Wagno Godez, 2018), Alano (dir. Sílvio Leal e Henrique Oliveira, 2019), Como ficamos da Mesma Altura (dir. Laís Santos Araújo, 2019), Trincheira (dir. Paulo Silver, 2019), O Poeta do Barro Vermelho (dir. Matheus Nobre, 2019), O Branco da Raiz  (dir. Anderson Barbosa, 2019), Nas Quebradas do Boi (dir. Igor Machado, 2019), Tambor ou Bola (dir. Sérgio Onofre, 2019), Ainda te amo demais (dir. Flávia Correia, 2020), A Barca (dir. Nilton Resende, 2020) e O Retirante (dir. Tarcisio Ferreira, 2020).  O longa Cavalo (dir. Rafhael Barbosa e Werner Salles Bagetti, 2020) também foi selecionado fora do estado por Mostras e Festivais.

Pelo que temos registrado de seleções ou convites para exibição destes 23 filmes fora do estado a partir das páginas de cada um deles no Alagoar, contabilizo mais de 260 seleções em Mostras e Festivais, sendo 75 destas internacionais.”

Este breve levantamento foi realizado em junho de 2022. Não contabiliza por exemplo a trajetória do filme Infantaria (dir. Laís Araújo), nem de Dois Cabra (dir. Alex Walke) que tem circulado nacional e internacionalmente.

Vou registrar aqui um apelo para as pessoas trabalhadoras dos filmes alagoanos. Pode parecer tolo, mas cuidar para que os dados dos filmes estejam atualizados no Alagoar faz imensa diferença. O Alagoar não tem condições e não tem como dar conta disso sem a colaboração das pessoas que representam as obras audiovisuais locais. Por isso, fica o pedido para que confiram as páginas das obras audiovisuais e nos repassem atualizações pelo e-mail audiovisualagoas@gmail.com

O que ou quem dita que filmes de curta duração não tem valor para o mercado?

Pessoas e empresas ditam que os filmes de curta duração não são prioridade para o mercado do audiovisual, mas isso não deve ser equivocadamente traduzido como se filmes de curta duração não tenham valor para o mercado da arte, cultura e do audiovisual.

Retomo novamente a reflexão sobre a narrativa única, pois ao assumir que filmes de curta duração são filmes menores, falta espaço para reconhecer a trajetória de filmes de curta duração que foram tão valiosas quanto a de filmes de longa duração ou até mais. 

Paga-se um preço alto pela ausência de reconhecimento dos filmes de curta metragem brasileiros, por não termos pesquisas que demonstrem o que foi proporcionado através do investimento de recursos públicos no incentivo de filmes de curta duração. Pois o fortalecimento vem a partir da difusão de narrativas diversas e múltiplas, a partir do estudo de como o cenário do audiovisual brasileiro foi similar e diferente em cada estado e entre suas regiões.

Sou testemunha da trajetória do audiovisual alagoano e tenho dificuldades em assimilar o que os filmes de curta duração viabilizaram para o Estado na última década. Devido à ausência de dados, e também por ainda estarmos colhendo e semeando a recente safra de editais locais entrecortada pela pandemia de Covid-19. 

Contabilizamos entre 2011 e 2022, 12 editais de incentivo ao audiovisual realizados em Alagoas: 06 com recursos do Governo de Alagoas (03 deles com recursos da ANCINE), 03 com recursos da Prefeitura de Maceió (02 deles com recursos da ANCINE), 02 com recursos da Prefeitura de Arapiraca (01 deles com recursos da ANCINE), e 01 via Lei Aldir Blanc. Reunindo os resultados publicados destes editais chegamos a conta de 182 projetos de filmes de curta duração contemplados, sendo 116 entre 2021 e 2023. Adiciono a ressalva também de que os curtas contemplados pelos editais de 2019 e 2020, que somam 97 curtas tiveram o prazo de realização prorrogado devido aos impactos da pandemia de Covid-19. Em consequência, aguardamos ainda o lançamento e a circulação da maioria dos filmes de curta duração contemplados nos editais dos últimos quatro anos.

Alagoas repassou incentivos sistematicamente para projetos de filmes de curta-metragem nos últimos dois anos, ao adicionar a Lei Aldir Blanc, nos últimos três anos, e essa ação está em processamento. Na teoria um curta teria um ano para ser produzido, como previsto nos editais, mas na prática pode levar mais tempo, como em muitas vivências que estão ainda se desenvolvendo. Na teoria também um longa teria dois anos para ser produzido, na prática acaba que esse tempo não é suficiente também.  

Em 2024, a depender de quantos filmes das duas centenas (aprox.) de curtas alagoanos ainda inéditos venham a ser lançados, viveremos o impacto e iniciaremos a mensurar os resultados do recurso repassado neste cenário promissor de editais de incentivo ao audiovisual local sistemáticos. 

Foram os curtas alagoanos, e as pessoas trabalhadoras do audiovisual local que os valorizam, que provaram para o Governo de Alagoas e para as prefeituras de Maceió e Arapiraca, que era valioso incentivar projetos de filmes através de recursos públicos. E que possibilitaram também a ponte que conectou a política cultural local à política do audiovisual da Agência Nacional do Cinema (ANCINE), pois foi e é uma das ferramentas que somam para a formação informal das pessoas trabalhadoras do audiovisual local.

Vale lembrar que a primeira organização do audiovisual em Alagoas foi encabeçada por Hermano Figueiredo e foi a Associação Brasileira de Documentaristas e Curta-metragistas de Alagoas (ABDeC-AL) que atuou entre 2002 e 2013. Outra pessoa que encabeçou a ABDeC-AL foi Pedro da Rocha (1957-2021), e que o Edital de Incentivo ao Audiovisual em Alagoas passou a se chamar Edital Pedro da Rocha em 2022, porque Pedro foi um dos principais articuladores e defensores do repasse de incentivo público via edital. 

Na elaboração do primeiro edital em 2010 havia a referência do DOCTV e o pensamento de propor o edital para realização de um único filme de longa metragem. E esse movimento se repetiu em outros momentos em que se refletiu sobre editais de incentivo ao audiovisual em Alagoas, essa comparação desproporcional de se deveria dar mais recurso para a realização de um único filme de longa duração ou se deveria pulverizar o recursos em vários filmes de curta duração.

A escolha recorrentemente foi a de contemplar filmes de curta-metragem. E surpreendentemente, sem formação e sem ações formativas, o número de projetos de filmes de curta duração seguiu se multiplicando, alcançando o total de 109 projetos de filmes de curta duração habilitados no Edital Pedro da Rocha, em 2022. A demanda por recursos para incentivo de filmes de curta duração existe e tende a seguir se comprovando em novos editais. 

É possível perceber que há multiplicação de propostas para filmes de longa duração, contudo numa proporção menor, visto a complexidade exigida no processo de submissão de projetos de longas-metragens.

A escolha de distribuir os recursos de incentivo através da premiação de obras audiovisuais de curta-metragem foi a forma mais democrática de contemplar mais pessoas autoras diversas em comparação ao que seria alcançado se o mesmo recurso fosse destinado para longas, séries e telefilmes. 

Acredito que as escolhas para a distribuição de valores de premiação podem ser melhor embasadas através da análise dos editais de incentivo ao audiovisual locais já realizados, contudo ao mesmo tempo ao ter como referência o que já foi feito, pode-se ter dificuldade para considerar o que ainda não foi feito. Destinar mais recursos para pesquisa por exemplo é algo que não foi feito, mas caso fosse poderia inclusive possibilitar que fossem realizados estudos sobre os curtas-metragens alagoanos, os editais de incentivo, entre outras questões que poderiam colaborar na compreensão de como o audiovisual alagoano pode melhor investir para o seu desenvolvimento sem comprometer suas principais representações e conquistas.

Muito do que foi compartilhado por este texto é fruto do trabalho voluntário de uma pesquisadora do audiovisual alagoano, tão comprometida com os curtas-metragens que se assume como uma curta-metragista, e que agradece aos curtas por tudo que eles dão ao Alagoar e pelo tanto que eles somam na trajetória e história do audiovisual alagoano.

Sobre Larissa Lisboa
É coidealizadora e gestora do Alagoar, compõe a equipe do Fuxico de Cinema e do Festival Alagoanes. Contemplada no Prêmio Vera Arruda com o Webinário: Cultura e Cinema. Pesquisadora, artista visual, diretora e montadora de filmes, entre eles: Cia do Chapéu, Outro Mar e Meu Lugar. Tem experiência em produção de ações formativas, curadoria, mediação de exibições de filmes e em ministrar oficinas em audiovisual e curadoria. Atuou como analista em audiovisual do Sesc Alagoas (2012 à 2020). Atua como parecerista de editais de incentivo à cultura. Possui graduação em Jornalismo (UFAL) e especialização em Tecnologias Web para negócios (CESMAC).

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