Texto: Imagens do Inconsciente (dir. Leon Hirszman)

Texto: Matheus Costa. Revisão: Larissa Lisboa.

O que é loucura?1

O Museu de Imagens do Inconsciente é um centro de pesquisa e estudo que visa fomentar a discussão acerca da produção arte-cultural (Amarante e Torre, 2017) de portadores de transtornos psíquicos. Como também, ser um agente de humanização destes portadores, para isso, tem na suas produções a finalidade de expor a riqueza interior do ser humano, e contribuir para uma mudança dos paradigmas acerca dos estigmas sobre essas pessoas.

Nesse sentido, a série de documentários de Leon Hirszman denominada de Imagens do Inconsciente (1986), traz uma análise artística/psicanalítica acerca dos produtores culturais do Ateliês Terapêuticos presente no Museu de Imagens do Inconsciente.

O primeiro documentário traz a história de Fernando Diniz, negro, pobre, artista multifacetas e esquizofrênico. Além disso, nesta primeira parte da série documental podemos observar a relação entre saúde mental, loucura e a saúde mental da população negra. Por isso, visando se desdobrar acerca dessa relação, nos propomos a articular as discussões sobre loucura e arte a partir desta obra audiovisual.

Segundo Basaglia (2010, 35) “a psiquiatria clássica limitou-se à definição das síndromes em que o doente, arrancado de sua realidade e apartado do contexto social em que vive, vê-se etiquetado, ‘constrangido’ a aderir a uma doença abstrata, simbólica”. Nesse sentido, os autores da série documental visam trazer uma crítica à transformação de portador de transtorno psíquico a um objeto psiquiátrico (Basaglia, 2010), e mais precisamente, a todo o processo manicomial.

O que posteriormente desembocou na Reforma Psiquiátrica (RP), em conformidade com Amarante e Torre (2017, 765) “a RP brasileira se constituiu como luta por liberdade e contra todas as formas de violência e tem como origem as lutas sociais e populares pelos direitos humanos e pela democracia”. Sendo assim, a Reforma tornou-se um dispositivo, no Brasil, de disputa acerca da loucura, saúde mental e sofrimento.

A narrativa acerca dos portadores de transtornos psíquicos, já não visa mais ter na sua gramática a identificação dos portadores “pelo diagnóstico psiquiátrico ou psicopatológico, mas sim pela afirmação de direitos de cidadania e construção de possibilidades de reprodução social” (Amarante e Torre, 2017, 764).

Sendo assim, abre-se a cortina para novos processos de “cura” tal como a produção feita nos ateliês do Museu do Inconsciente, pois no lugar de eletrochoque, aprisionamento e etiqueta de louco, o sujeito desdobra-se para a sua riqueza interior.

Um exemplo disso é Fernando Diniz, pois, “pinturas de um mesmo autor, se examinadas, revelam uma repetição de motivos, e a existência de uma continuidade de fluxo inconsciente”2, como também, possibilitam um elaborar do que foi vivido e do que estava sendo vivenciado pelo sujeito.

O caso de uma pessoa portadora de psicose, que mesmo antes do transtorno já tinha uma profunda ferida na imagem que fazia de si mesmo, sobretudo, devido a condições sociais opressoras e as contradições que dilaceraram a sua infância. Diniz é preto, e sendo preto, sofreu a epidermização do racismo (Fanon, 2020) na pele, e os seus desdobramentos na imagem de si.

Como o próprio pintor traz nas suas produções e fala, ser branco tem um grande valor na economia colonial dos afetos, ou ao relatar um episódio da sua vida, “em um clube de operários, as meninas o evitavam porque era preto e não sabia dançar”, assim, se sentia fracassado. Neusa Santos Souza traz no seu livro Tornar-se negro (2021), o racismo produz efeitos no real.

O real de Fernando sofreu os efeitos de um país antinegro, mas mesmo com um eu frágil, e as dores do racismo na sua vida, buscou na produção artístico-cultural narrar e elaborar os seus sentidos, mostrando a interseção entre loucura, racismo, reforma psiquiátrica e saúde mental.

No artigo “Nem crioulo doido nem negra maluca: por um aquilombamento da Reforma Psiquiátrica Brasileira”, David e Vicentin (2020) examinam como a lógica manicomial é permeada pelo racismo científico e pelo aprisionamento da população negra em colônias psiquiátricas. Ou seja, como os manicômios eram lugar de “depósito” dos indesejáveis.

Por isso que a Reforma Psiquiátrica é um assunto tão importante para se discutir na saúde mental. Sem ela, não seria possível humanizar casos como o de Fernando Diniz, ou até mesmo, contemplar a sua arte, pois para a psiquiatria clássica seria algo sem sentido, “coisa de louco”, e dessa forma, sem valor, pois como apresentado no documentário, “a psiquiatria moderna não se interessa pelas riquezas do mundo interior do esquizofrênico”, mas através da arte, é possível constatar possibilidades, pulsões criadoras, encontrar ferramentas para a reestruturação interior dos ditos loucos, recobrar a dignidade daqueles que romperam com a realidade.

Notas:

1 Gostaria de agradecer a Tamires, Lucas Couto e Geane Limas pela contribuição na escrita deste texto.

2 Trecho retirado do documentário “Fernando Diniz – Em busca do Espaço Cotidiano (Imagens do Inconsciente)” de Leon Hirszman.

Referências:

AMARANTE, P. TORRE, E. H. G. Loucura e diversidade cultural: inovação e ruptura nas experiências de arte e cultura da Reforma Psiquiátrica e do campo da Saúde Mental no Brasil. Interface – Comunicação, saúde, educação. P. 763-774, 2017.Disponível em: <https://www.scielo.br/j/icse/a/wbrrsJPgptHd6q5qgrdnWJk/format=pdf&lang=pt>. Acesso em maio de 2023.

BASAGLIA, Franco. Escritos selecionados em saúde mental e reforma psiquiátrica. Organização: Paulo Amarante; tradução: Joana Angélica d’Avila Melo. Rio de Janeiro: Garamond, 2010.

DAVID, E.C.; VICENTIN, M.C.G. Nem crioulo doido nem negra maluca: por um aquilombamento da Reforma Psiquiátrica Brasileira. Saúde em Debate – Revista do centro brasileiro de estudos de saúde, Rio de Janeiro, v. 44, n. especial 3, p. 264-277, out. 2020. https://saudeemdebate.org.br/sed/issue/view/41/v.%2044%2C%20n.%20ESPECIAL%203. Acesso em maio de 2023.

FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. Título original: Peau noire, masques blancs; traduzido por Sebastião Nascimento e colaboração de Raquel Camargo; prefácio de Grada Kilomba, posfácio de Deivson Faustino; textos complementares de Francis Jeanson e Paul Gilroy. São Paulo: Ubu Editora, 2020.

SOUZA, N. S. Tornar-se negro ou As vicissitudes da identidade do negro brasileiro em ascensão social. Rio de Janeiro: Zahar. 2021.

HIRSZMAN, Leon. Fernando Diniz – Em Busca do Espaço Cotidiano (Imagens do Inconsciente de Leon Hirszman). Youtube, 2013. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=9-uN1lsWFjM&t=1s. Acesso em maio de 2023.

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