Resenha: Maceió é um ovo (dir. Carlos Alberto Barros)

Texto: Jamerson Soares. Imagem: divulgação.

Maceió é um Ovo’ é um manifesto que revela um riso doloroso de luta 

Curta foi um dos destaques do segundo dia da 14ª Mostra Sururu de Cinema Alagoano

A galinha vive como um sonho. Não tem senso de realidade. Todo susto da galinha é porque estão sempre interrompendo o seu devaneio. A galinha é um grande sono. A galinha sofre de um mal desconhecido. O mal desconhecido é o ovo”. Este é um trecho do conto “O ovo e a galinha”, do livro Felicidade Clandestina (1971), de Clarice Lispector, e que condiz muito com o curta-metragem “Maceió é um Ovo” (2023), dirigido por Carlos Alberto Barros, exibido no segundo dia da 14ª Mostra Sururu de Cinema Alagoano.

Maceió é um Ovo é um manifesto e uma sátira fílmica sobre as mazelas sociais do município, como as desigualdades sociais e geográficas, o coronelismo político, o crime ambiental da Braskem contra a população vulnerável e periférica, a desvalorização do artista local, a falta de saneamento básico, as línguas sujas das praias, entre outras questões.

Cinco personagens com os rostos pintados de branco a la Pierrot, da Commedia Dell’Arte, e expressões marcantes e grotescas, falam revoltas e incômodos de uma forma irônica acerca daquilo que Maceió tem se tornado: um minúsculo quadrado de galinhas que recebem migalhas de afetos, de atenção, de ajuda, e que se sujeitam a tal ato para encontrar algum tipo de sobrevivência. Essa imagem pôde ser vista no momento em que os personagens, como galinhas, ajoelhados, bicam pedaços de pão dado por uma terceira persona, que pode ser entendido como algum chefe, político, coronel, exercendo o papel principal do pão e circo.

Com duração de 5 minutos e 29 segundos, produzido e filmado em Maceió, o curta é definido pelo diretor como “filme teatrado” porque é uma espécie de recorte cinematográfico da peça teatral de mesmo nome, do grupo OzInformais. O trabalho foi gravado durante os ensaios da peça, o que deixa o filme com uma atmosfera mais caseira, artesanal e despojada. Os diálogos são fortes e ditos como gritos em silêncio, discursos solitários que também contemplam multidões. Frases como “tem merda na água” e “quantas vezes você foi o opressor da liberdade de alguém?”, deram um tom militante às cenas.

O filme foi realizado em preto e branco, o que fez com que evidenciasse o sombrio, a carga dramática, o devaneio e a desolação. Vale lembrar que o texto foi construído baseado no poema homônimo de Lenine Oliveira, com trechos extraídos da revista Febre do Rato.

Há cenas enxutas, com bastante uso de planos fechados, frontais e mergulhos nos atores, e que dialogam com o Teatro do Absurdo – movimento teatral pós-Segunda Guerra Mundial que abarca peças que tratam de temas existenciais e sociais, como a solidão e a incomunicabilidade do homem moderno -; Teatro Pobre – estilo de encenação que propõe a eliminação de tudo que não tenha relação entre o ator e a plateia, ou seja, o uso mínimo de cenário ou recursos estéticos; e o Dogma 95 – movimento cinematográfico que visava a realização de filmes de baixo orçamento, indo contra às grandes produções hollywoodianas, e com uma maior autonomia dos diretores-autores.

Outro ponto que pôde ser visto foi o esquecimento de algumas questões técnicas no filme e no espaço de exibição, como o som das palavras que às vezes não era tão claro, e também a voz do diretor que escapou em uma das cenas. Porém, tudo isso é aceitável pois foi uma obra que deu um certo frescor na programação, junto com tantos outros filmes alagoanos, e foi um grito que precisava ser ecoado na tela de cinema.

É evidente também a postura cênica dos atores, um pouco do uso da pantomima, o palhaço da mímica, os posicionamentos corporais que revelavam também os seus posicionamentos como cidadãos na vida real, e o compromisso deles com a palavra, com o não dito que deve ser dito. Parecia que eles sabiam que tinham vivido, de fato, aquilo já dito. A revolta popular também pousava em suas línguas afiadas: ambos se pertenciam e se autoidentificavam. Havia ali um riso doloroso de luta.

O texto de Clarice não faz parte do filme, mas acende uma chama de reflexões sobre o curta e o contexto sociocultural e ambiental que Maceió vive hoje (um mal e um crime desconhecido-conhecido há décadas prestes a ter a casca destruída), e também nos leva a questionar se estamos ou não na condição de galinhas ou pombos.

Isso só reafirma o quanto o cinema e a arte conseguem descompassar ritmos, resgatar o atemporal, criar novas possibilidades de dançar no escuro, e lançar à vista da população o que antes estava invisível, que não era percebido, já que vivemos em constante imediatismo e velocidade.

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