Texto: Eu gosto de cinema chileno

Texto: Matheus Costa. Revisão: Tati Magalhães

Eu gosto de cinema chileno1

Projeto 0.1: Apontamentos iniciais.

Conversava há uns dias que ainda iremos ter que pesquisar bastante sobre as transformações na sociedade brasileira oriundas das ações afirmativas. Em um nível mais visível, podemos observar como autores e autoras negras adentram cada vez mais nas universidades e como, nos últimos anos, algumas editoras focaram em republicar ou publicar obras destas e destes pensadores, vítimas da política de esquecimento que impera nos nossos espaços acadêmicos.

É bastante engraçado se desdobrar nas produções que antecedem a lei Federal n.° 12.711, que generalizou as cotas para negros e indígenas em todas as universidades federais, pelas limitações argumentativas que permeava alguns pensadores que eram, ou ainda são, contrários às ações afirmativas. Entre questionamentos sobre a capacidades destes e destas estudantes em manter o status quo das epistemologias europeias e norte-americanas, ou deles e delas entrarem nas universidades apenas como estudantes, gostaríamos de percebê-los como agentes de transformações das universidades, em particular, e da sociedade, no geral.

No entanto, o que diabo há de correspondência entre as ações afirmativas e o cinema? Talvez, o VI Copene Nordeste possa nos responder. Era dia 14/11 de novembro, às 19h, e a Cida Bento nos falava com a voz bem baixa sobre o Pacto Narcísico da Branquitude e os seus mecanismos para mantê-los, os brancos, nos cargos mais elevados da sociedade brasileira. Podemos tirar dois achados disso, primeiro: que privilégios brancos são racismo e segundo: como essa segregação racial é uma barreira para o desenvolvimento, ou nas palavras de Nego Bispo, no envolvimento da sociedade brasileira.

O cinema é branco, nem falo sobre tonalidade de pele, mas isso é uma redundância absurda. No entanto, como nos aponta Foucault, não há perpetuação de poder sem também existir resistência. Nesse sentido, o cinema negro abre as suas asas através, principalmente, dos desdobramentos das ações afirmativas sobre o cinema brasileiro. O cinema traz em si mesmo as suas marcas do elitismo e da branquitude, seja pelas representações dos corpos negros, seja por suas discussões. O grande problema disso, conforme Achille, é um fechamento do pensamento sobre o mundo em volta do seu próprio umbigo.

Em contrapartida, podemos evidenciar como as cotas raciais, no Brasil, trazem para o cinema independente, principalmente, uma faísca para o desenvolvimento da prática, discurso e teoria cinematográfica. Mas para isso devemos descolonizar o cinema, e, em conformidade com Fanon, para descolonizar já não devemos nos questionar sobre o que é o mundo (o que é o cinema?), mas transformá-lo. Ou buscar apreender o que é uma crítica, uma resenha, uma sinopse em detrimento dessas questões, podemos nos deixar ser afetados pelo cinema e quando existe desejo, transformá-lo em um texto escrito. A supremacia da experiência contra a vontade de saber eurocêntrica de fixação do mundo através do conhecimento, ou conforme Luiz Rufino, o desencantamento do mundo.

Por fim, para concluir essa primeira parte, talvez, seja necessário repensar sobre como ocorre a ocupação, territorialização do cinema em Alagoas, mais particularmente, em Maceió. A 14a Mostra Sururu poderia refletir sobre como realizar uma mostra de cinema dentro de uns dos bairros mais elitistas e brancos de Maceió, pode trazer implicações para o acesso ao cinema em Maceió. Quais são os corpos que podem estar 19h de uma quinta no Cine Arte Pajurança? Em vez de ocupar as partes brancas, podemos descentralizar as atividades e partilhar para quem quiser participar, ocupar a branquitude não deveria ser uma preocupação para o cinema independente, muito menos para o cinema negro.

Projeto 0.2: Já vou.

Nesse sentido somos convidados a adentrar no mundo particular de Roseane Monteiro, mundo esse atravessado pelos livros, pela família, pelo cinema e pela “experiência vivida”. No entanto, antes de tudo, somos mobilizados por diversas vozes em uma sala de estar, cheios de encantamento do mundo, politica de vida e de felicitações. O peso de ser a primeira da família, o medo de embarcar em uma nova rota, os desafios de enfrentar o invisível da morte, a esperança de brincar, a agitação de estar entre os nossos e a felicidade de iniciar uma nova fase.

O convite para habitar o seu mundo é realizado pela imersão dentro do seu lar. O que há de mais íntimo do que nosso lar, família e as nossas vulnerabilidades? É necessário desejo de narrar, compartilhar e mostrar algo que julgamos realmente importante. É preciso coragem para partilhar um momento de fragilidade e de desafios, um projeto de doutorado. Ao mesmo tempo, é satisfatório perceber como foi realizado isso, a agitação da família, as conversas, a narração. Narrar, ou melhor, contar uma história é por excelência uma função dos historiadores, mas também, do cinema.

Roseane faz um elo entre os dois para nos contar um fragmento do seu percurso, a junção entre as ações afirmativas, a historiografia e o discurso cinematográfico se presentifica na simbiose dessa experiência. Conversava sobre como Cultura Ballroom: A arte da Resistência tinha uma grande potencialidade estética, justamente, por essa dimensão estar presente na cultura e nas realizadoras, mas que não foi explorada dentro do filme. Ou como Um Dia Ela Amanheceu Assim, em determinados momentos, me deu uma percepção de folclorização e exotização da Miss Paripueira pela forma que escolheu narrar os “efeitos” da Ambrosina e as violências que o seu corpo sofreu (e a falta sempre diz algo sobre a simbiose).

A subversão metodológica de contar história em primeira pessoa nos ajuda a romper com a barreira da representação e da estética. Nesse sentido, narrar sua história em primeira pessoa, mais precisamente, narrar o seu processo com o doutoramento nos possibilita compreender a importância da transposição da representação e da estética dentro do cinema. Projeto de doutorado. 1 nos inunda pelas imagens e pela transposição da estética particular da Roseane para o filme, seja na escolha de narrar (voz) ou de gravar a si mesmo e os seus familiares.

O lugar que estamos gravando e de qual lugar gravamos importa bastante na obra final, neste caso, a escolha de gravar foi a partir de si mesmo. Dificilmente iremos completar algo sem o desejo ou começar algo, o desejo de gravar ou de eternizar algo, esse mesmo desejo estará presente dentro de cada filme, plano, campo e afins, ele nos informa algo, nos diz algo, sinaliza algo. Mas antes de tudo, ele é a simbiose do discurso social com subjetivo, sendo assim, traz como marca o sujeito e o social, não em relação de oposição ou de delimitação, mas como simbiose.

Projeto 03: Fechamento.

Esse texto (?) não é uma crítica, nem uma resenha, nem sinopse, nem um texto, consiste apenas em diversas palavras, disléxicas, aglomeradas motivadas por um atravessamento. Como André Bazin dizia, a função não é trazer uma verdade, mas, exclusivamente, prolongar o máximo na inteligência e na sensibilidade os que o leem, um impacto. Não tenho nenhum compromisso com o português bem escrito ou, muito menos, com o discurso cinematográfico, meu compromisso é com a supremacia da experiência advinda do cinema, nem com as ideias do que deve ser o cinema ou com o que é, exclusivamente, pela forma que ele me atravessa.

Como uma querida amiga me falava, precisamos descolonizar o olhar, sem dúvida. Nesse sentido, descolonizar o olhar é habituar o olho ao descanso, à paciência, ao deixar-se aproximar-se-de si”, isto é, a capacitar o olho a uma atenção profunda e contemplativa (nas palavras de Han). O cinema alagoano nos convida a olhar atentamente para as suas produções, uma oportunidade de, mesmo que precária, descolonizar o olhar. Falo precária, porque precisamos descentralizar o cinema alagoano dos acadêmicos, como também, dos brancos de classe média do Estado. O CINEMA NEGRO ESTÁ NO TIK TOK, lá podemos inventar e criar sem as barreiras colonialistas e imperialistas, lá não há cinema chileno, mas existe cinema.

A história Mais Velha do Mundo: Porque Eu Te Amo e Cultura Ballroom: A Arte da Resistência nos ensinaram o que é o dito cinema negro, mas não há a necessidade de defini-lo, apenas senti-lo. O Projeto Doutorado 1 nos mostrou o que é cinema negro, neles (apenas alguns) podemos ver que no mundo que a descolonização é um projeto de civilização, existe a supremacia da imagem. Por fim, como dizia Fanon, o que o povo deseja é que tudo seja partilhado, sendo assim, a Mostra Sururu não se faz cinema independente ou negro na Pajuçara, ou melhor, não se faz cinema se centralizando na Pajuçara.

É tempo de repensar as práticas feitas no presente, mas que possamos nos desdobrar em um futuro de possibilidades.

1 Frase dita por uma colega, achei bastante engraçado, pois invoca uma posição que, às vezes, adotamos para nos relacionar com o cinema e usamos dentro de determinados setores para ter mais capital social.

Be the first to comment

Leave a Reply

Seu e-mail não será divulgado


*