Crítica: Bem no Fundo das Retinas (dir. Mik Moreira)

Texto: Ana Maria Vasconcelos. Revisão: Janderson Felipe

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Atrás dos olhos, o breu da memória. Escuro. Silêncio. Mas o ser humano é para a linguagem: é preciso narrar para não morrer, então as histórias. Fachos. Aos golpes, como a cabeça.

Entramos no documentário de Mik Moreira, Bem no fundo das retinas, para conhecer a história de seu avô, de quem cuida há alguns anos. “Laércio Luiz de Amorim, fotógrafo de palácio, me chamavam”. Nos treze minutos de filme, o avô de Mik conta com orgulho um pouco dos seus quarenta e dois anos de profissão. Não sem alguma melancolia também. A fragilidade do corpo – que contrasta com a bravata das histórias, nas quais enfrenta alguns desafetos – encontra a narrativa no ponto em que Laércio rememora que ficou cego porque “bobeou” quando “o negócio” avançou. Para nós, que não sabíamos, o reflexo da luz em suas retinas passa a ser a alegoria da montagem, que alterna entre a persistência da narrativa fraturada e a sobrevivência das fotos para as quais ele já não pode olhar.

Tudo o que luta para não ser engolido pelo esquecimento se salva no branco da luz, no amarelo da fita de Noel Rosa, no marrom do sépia que não desbota. Na memória, um “roxo brilhante”. “Marrom, né?”, perguntam. “Marrom arroxeado”, concede. São os detalhes que ficam. Diante da foto 3×4 que tomba frente ao relógio, implacável, o andador é essa possibilidade de insistir ainda um pouco mais, de fazer valer a necessidade de narrar como salvação do apagamento, como recusa da morte. Essa força explode no alto contraste que ilumina o rosto: continuar.

As fotos do avô se amontoam numa superfície para sair de cena, uma a uma, pelas mãos da neta ao final do filme. Vão ser guardadas. “Guardar uma coisa não é escondê-la ou trancá-la.”, diz o Antonio Cicero. “Guardar uma coisa é olhá-la, fitá-la, mirá-la por / admirá-la, isto é, iluminá-la ou ser por ela iluminado”, continua o poeta. “Por isso se escreve, por isso se diz, por isso se publica, por isso se / declara e declama um poema: / Para guardá-lo”.

A fotografia é um modo de guardar. Um modo de narrar com luz a partir de um instante deduzido do apagão da memória. Um filme é um modo de reconstituir esse apagão que margeia a foto. Neste, neta e avô se revivem, ele nela, ela nele, os rostos sobrepostos. Voraz, o tempo esburaca a palavra, corrói a carne. Mas a imagem continua. Atrás dos olhos, bem no fundo das (agora nossas) retinas.

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