Crítica: Queima minha pele (dir. Leonardo Amorim)

Texto: Luís Otávio Mendonça. Revisão: Tati Magalhães

CRÍTICA: Queima minha pele, dir. Leonardo Amorim (2023)

Em Queima Minha Pele o corpo é uma arma e seus personagens estão submissos aos desejos dele. E por desejo não me refiro apenas ao carnal, mas também ao afetivo e de identificação. O corpo – imagem com cheiro, textura e calor – reage às vontades, urgências e fraquezas que os sentidos demandam. É por ele que os personagens gemem, choram e gritam. Sem ele não há atrito ou atração, e sem isso não há narrativa.

A representação do corpo aqui é tão viva que quando um personagem deita um vestido sob a cama e aponta para ele, simulando uma arma com a mão, a apreensão e o julgamento sobre aquele indivíduo se dá porque interpretamos a vestimenta como um corpo atrelado aos seus significados.

Os corpos presentes no quarto filme do cineasta Leonardo Amorim são armas porque, quando desejam, entram em atrito com o outro, com o que ele representa e também consigo. Fazem isso para atender às provocações causadas pelo que a presença do outro e a performance do desejo dele representam. A narrativa – e a ação – aqui não parte do nascimento dessas vontades, mas dos momentos de ebulição que estão ali para ilustrar essa dinâmica de submissão.

Quando Júlio, Caio e Rodrigo aparecem juntos pela primeira vez em cores quentes, a semiótica dos desejos é exposta em gozo, suor e sangue. A vulnerabilidade, o domínio e a performance aparecem como signos da masculinidade que percorrem essas narrativas individuais e apontam o quanto esses personagens dependem e estão presos a ela, em uma relação de quase simbiose.

Seja na encenação de perigo e dominância cujo gozo que vem dela só existe no campo da ideia; na tara que sobrevive no imaginário enclausurado e leva o desejo a um estado utópico, que beira ao sagrado; ou na incapacidade de se conectar com o outro e que vê na truculência contra o corpo um amortecedor.

A câmera, que captura tudo, também segue essa mesma lógica, mas em relação à imagem, aos signos do cinema (movimento, ritmo, manipulação) que são perseguidos com desejo pelo olhar do cineasta. Ela registra e expõe (em tela e em cena) a submissão desses sujeitos às vontades que ainda não foram inteiramente saciadas.

Embora essa ideia de performance da masculinidade em Caio pareça um tanto insuficiente comparada ao arco dos irmãos, o magnetismo nas cenas em que ele aparece e a forma como desperta os sentidos nos demais personagens faz bem ao filme, especialmente nas cenas com Julio.

A impressão é a de que ao compreender a potência que esses corpos exercem em tela, Queima liberta seus personagens de qualquer padrão de moralidade ou julgamento que não seja o deles mesmos, nos permitindo acessar e discorrer as complexidades de cada um da mesma forma que nos são apresentados, sem pudor. Em um período onde as mentes mais carcomidas sugerem que o cinema deve inibir a exposição do corpo e, se tratando de narrativas queer, da sexualidade em prol de uma identificação coletiva mais “saudável”, a obra, vinda do cinema independente, vai na contramão dessa lógica normativa e higienista e mostra que às vezes não basta colocar a mão no fogo, tem que botar o corpo inteiro.

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